terça-feira, abril 04, 2017

Dramas portugueses do cinema

SÃO JORGE
Como pensar — e, sobretudo, defender — a pluralidade interna do cinema português? E como pensá-la, em particular, no interior do mercado? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Abril).

Consulto os dados oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e verifico que o filme Eusébio – História de uma Lenda mobilizou menos de três mil espectadores na primeira semana de exibição: 2.956 bilhetes vendidos em 518 sessões, média inferior a seis espectadores por sessão.
De forma simples: estamos perante um apoteótico desastre comercial. Nada a ver, entenda-se, com o meu juízo de valor sobre o filme: centenas de milhares de espectadores não alterariam o facto de me parecer um medíocre exercício cinematográfico, incapaz até de dar conta da especificidade futebolística das memórias que trabalha.
Problematizar os dramas industriais e comerciais do cinema português através da “crítica” é uma velha demagogia que gera dois efeitos lamentáveis: mascarar os complexos problemas estruturais do audiovisual e alimentar o menosprezo pelo simples gosto de pensar.
Estamos a pagar muito caro um perverso fenómeno ideológico (acumulado ao longo de muitas décadas!) que favorece um axioma cego: de um lado estaria o cinema “popular” que arrasta multidões, do outro o cinema “artístico” que ninguém quer ver... Mesmo ficando pelas estreias de 2017, repare-se que o filme São Jorge (tudo o que se quiser, menos uma obra populista) já conseguiu superar o respeitável número de 30 mil espectadores.
Num espaço mediático saturado de informações “económicas”, a abordagem dos números do cinema continua a ser predominantemente fútil. Exemplo? É frequente lermos manchetes celebrando os 100 milhões de dólares alcançados por um qualquer “blockbuster” americano, omitindo-se o facto de o filme em causa ter custado 150 ou 200 milhões...
Nada disto decorre do modo como são avaliados os filmes, “comerciais” ou “intelectuais”. Só os mentirosos profissionais insistem em propagar a ideia de que os críticos (“bons” ou “maus”) fundamentam os seus discursos em qualquer maniqueísmo desse teor. E só mesmo as cabeças mais ingénuas, ou as práticas mais oportunistas, podem considerar que viveríamos no melhor dos mundos se pensássemos todos o mesmo sobre todos os filmes.
Importa sublinhar que o falhanço de Eusébio – História de uma Lenda não traz benefícios a ninguém. Nunca ninguém defendeu a noção de que a ausência de espectadores nas salas é um factor positivo. Resta saber se alguma vez, alguma política cultural (de direita ou esquerda) encarará o cinema como um território cuja diversidade importa defender no interior do mercado e, muito antes disso, nas formas de educação para as imagens.