No primeiro texto de A Descrição da Infelicidade (Quetzal, 2016), uma recolha de ensaios sobre autores austríacos, W. G. Sebald (1944-2001) cita estas espantosas palavras de Franz von Baader: "Ver e pensar são funções diferentes, nenhuma das quais explica a outra."
Podemos arriscar parafrasear esta sugestão dicotómica e lembrar que descrever a infelicidade (de acordo com a proposta do título) pode ser também uma paciente reformulação da hipótese da felicidade. Ou como escreve o próprio Sebald: "A descrição da infelicidade traz em si a possibilidade de a superar."
De Adalbert Stifter (1805-1868) a Peter Handke (n. 1942), o que Sebald procura (d)escrever não é exactamente um estado de alma austríaco, antes um movimento de ideias, silêncios e perplexidades em que o impasse dos protagonistas parece ir a par de grandes convulsões sociais e políticas. Isso é particularmente sensível no texto 'As agruras do amor', centrado em A História de um Sonho, a ficção de Arthur Schnitzler publicada em 1926 e que, em 1999, estaria na base do filme final de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados (o ensaio de Sebald surgiu em 1985). Lembra o autor:
>>> A obra literária de Schnitzler surge numa altura em que o conceito burguês de amor começa a entrar na fase de dissolução. Exerce um fascínio duradouro porque descreve, com verdadeira pena mas sem pathos, as calamidades provocadas por um ideal que se torna ideia fixa, e assim dá bem melhor conta da realidade social e emocional do que as obras de muitos contemporâneos que continuam a hipostasiar o amor.
Sugestivo e perturbante é o modo como Sebald liga vários dos seus objectos de estudo às convulsões culturais e civilizacionais da passagem do séc. XIX para o séc. XX e, muito em particular, à afirmação da psicanálise. Leia-se, por exemplo, o ensaio 'O criptograma veneziano', sobre o romance inacabado Andreas, de Hugo von Hofmannsthal (1874-1929), e o modo como nele surge o contraponto dos estudos de Sigmund Freud (1856-1939), sobretudo a propósito das formas de perversidade:
>>> Freud, nas suas explicações sobre as atitudes chamadas "perversas", refere que por via de regra se diz que alguém se tornou perverso, mas seria melhor dizer se manteve perverso. Daqui se pode extrapolar que a utopia erótica do homem se resolve na capacidade de se manter perverso com toda a inocência.
Deparamos, enfim, com um movimento da escrita que não pode deixar de evocar o tom deambulatório das ficções de Sebald, segundo um método que desembocaria no emblemático Austerlitz (2001): (d)escrever o mundo é convocá-lo e também repeli-lo, numa dialéctica potencialmente trágica. Em 'Sob o espelho da água', dedicado a Handke e, em especial, a A Angústia do Guarda-Redes antes do Penalty (1970 — transformado em filme por Wim Wenders, em 1972), Sebald discute essa questão fulcral da linguagem como elemento de comunicação e barreira existencial:
>>> A relação tautológica da língua com a realidade, tão íntima quando falamos mentalmente, revela que não possuímos das coisas que nos rodeiam mais que o eco das nossas próprias ficções.