domingo, dezembro 25, 2016

Wenders, Handke e os outros (2/3)

O novo filme de Wim Wenders é uma prodigiosa cerimónia cinematográfica ancorada nas palavras escritas por Peter Handke — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Dezembro), com o título 'Nick Cave: um compositor que gosta de cinema'.

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A presença de Nick Cave em Os Belos Dias de Aranjuez tem qualquer coisa de aparição fantasmática. Provavelmente, não deveríamos dizê-lo, permitindo que o espectador descobrisse tal aparição sem ter qualquer informação prévia. O certo é que o trailer (atenuando o próprio efeito de surpresa) revela a sua presença no cenário do filme, ao piano, interpretando Into My Arms — trata-se de uma canção de 1997, incluída no alinhamento do álbum The Boatman’s Call, décimo registo de estúdio de Nick Cave and the Bad Seeds [em baixo: teledisco de Jonathan Glazer].
As mágoas românticas das suas canções têm sido uma pontuação importante de vários momentos da obra de Wenders, a começar por As Asas do Desejo (1987), em que Nick Cave e a sua banda surgiam mesmo numa das cenas. Há ainda temas de sua autoria em Até ao Fim do Mundo (1991), Tão Longe, Tão Perto (1993), e Imagens de Palermo (2008). Wenders incluiu também uma das suas canções no documentário The Soul of a Man (2003), da série The Blues, produzida por Martin Scorsese.
Poderá pensar-se que a condição de artista de culto reduz as suas relações com o cinema a filmes mais ou menos independentes e marginais. O certo é que escutamos canções de Nick Cave em produções como uma comédia de Jim Carrey, Doidos à Solta (1994), Batman para Sempre (1995) e até mesmo Harry Potter e os Talismãs da Morte: Parte 1 (2010).
O seu trabalho como autor de bandas sonoras é indissociável da colaboração com Warren Ellis, australiano como ele, companheiro de The Bad Seeds e também de um dos projectos “paralelos” de Nick Cave, a banda Grinderman, fundada em 2006. Assinaram, assim, a música de títulos como Escolha Mortal (2005), de John Hillcoat (com Nick Cave a assumir também as funções de argumentsita), O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford (2007), de Andrew Dominik, A Estrada (2009), outra vez de Hillcoat, e Custe o que Custar (2016), de David Mackenzie, um “western” em cenários contemporâneos, recentemente lançado entre nós. Compuseram ainda as ambiências musicais para a edição audio de um romance de Nick Cave, The Death of Bunny Monroe (2009).
20.000 Dias na Terra (2014), de Iain Forsyth e Jane Pollard, destaca-se de todos estes títulos, uma vez que apresenta uma reflexão autobiográfica pouco canónica, brincando com as próprias regras do documentário. Entretanto, Andrew Dominik voltou a colaborar com Nick Cave no filme One More Time with Feeling, revelado há cerca de três meses em paralelo com o álbum Skeleton Tree. Num registo que combina o olhar documental com a atitude confessional, nele se cruzam as gravações do disco e a memória trágica de um dos quatro filhos de Nick Cave, Arthur, falecido num acidente em 2015, aos 15 anos de idade — para já, o filme teve apenas uma apresentação isolada em salas de cinema de todo o mundo (incluindo Portugal), na véspera do lançamento de Skeleton Tree.

[continua]