O desenvolvimento da série The Walking Dead continua a ser um caso exemplar de gestão temática e dramática — este texto foi publicado no nº44 da revista Metropolis, com o título 'Os mortos, os vivos e os seus fantasmas'.
Para o lançamento da sétima temporada de «The Walking Dead» (AMC) foi criado um cartaz com a personagem de Negan (Jeffrey Dean Morgan), o implacável líder dos ‘Saviors’, exibindo o seu terrível taco de baseball com arame farpado (de nome ‘Lucille’). Negan apresenta-se na sua pose de desafio e ameaça, sob uma legenda que proclama: “Só agora estamos a começar” (We’re just getting started).
Como é óbvio, a frase remete para a saga agressiva dos ‘Saviors’, com todo o seu sistema de dominação física e controle psicológico. O certo é que pode também ser entendida como uma mensagem subliminar (ou nem tanto...) dos criadores da própria série. A saber: «The Walking Dead» vai na sua sétima temporada (a oitava, que conterá o episódio nº 100, já está agendada para 2017), mas tudo se passa como se só agora estivesse a consolidar as bases de um desenvolvimento que pode ser ainda muito demorado.
Trata-se, antes do mais, de uma questão de pragmatismo — narrativo e televisivo. Que é como quem diz: não seria fácil manter a dinâmica interna da série apenas através da oposição entre personagens humanas e zombies. O pano de fundo apocalíptico funcionou bem nas primeiras temporadas mas, a certa altura, foi necessário encontrar outros caminhos narrativos, sob pena de instalar uma banal inércia de acontecimentos e peripécias.
Ora, precisamente, Negan e os elementos do seu bando surgem como uma espécie de delírio extremo de uma via cada vez mais importante na série: a existência de outros grupos de sobreviventes, obedecendo a lógicas mais ou menos fechadas de organização, de alguma maneira atenuando o protagonismo de Rick Grimes (Andrew Lincoln) e da sua heróica tribo de resistentes.
No plano simbólico, estes movimentos internos estão longe de ser irrelevantes para a economia dramática da série. Na verdade, foi relativamente cedo (talvez ao longo da terceira temporada, quando o grupo de Rick se instala numa prisão abandonada) que «The Walking Dead» começou a distanciar-se do seu dispositivo fundador — os vivos contra os mortos-vivos —, abrindo a ficção a variações tão sugestivas quanto perturbantes.
A principal consequência desta evolução envolve uma bizarra humanização de todas as peripécias. No limite, dir-se-ia que os zombies, ainda que sempre presentes, funcionam como reveladores das contradições do género humano e das respectivas formas de poder. Os zombies são figuras fantasmáticas, não tanto porque desafiam a harmonia de qualquer real, mas sim porque a sua presença serve de espelho ambíguo da fragilidade de qualquer relação humana.
Escusado será dizer que, nesta conjuntura, o maligno Negan emerge como expressão do “segredo” dramático que o mestre Hitchcock tanto gostava de lembrar: é preciso que a personagem do mau seja muito forte... Com ele, e através dele, «The Walking Dead» afirma-se também como um caso invulgar de resistência no tão vasto (e, afinal, desequilibrado) panorama das séries televisivas contemporâneas.