segunda-feira, dezembro 19, 2016

Televisão & audiências

PAUL KLEE
Livro Aberto
1930
Como pensar a televisão sem pensar as audiências? Porque aceitamos a cegueira publicitária dos números? — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (16 Dezembro), com o título 'O número sem qualidades'.

A ideia de que a televisão funciona como um mero acumulador de audiências é uma pobre ideia. Mas é a ideia que, no nosso glorioso século XXI, determina e reforça as suas lógicas mais fortes.
Com o passar dos anos, a aceitação tácita dos números das audiências, instalou mesmo uma anestesia que leva a que quase não se aborde o mais básico. A saber: as audiências não são a manifestação de uma “vontade” estética ou ideológica dos espectadores, pela simples razão de que — mesmo evitando discutir a redução dos comportamentos desses espectadores a um qualquer número sem qualidades — nenhum fenómeno social, individual ou colectivo, cabe numa banal classificação métrica.
Na prática, triunfou o mais puro determinismo paternalista. O único “conceito” gerado pela ideologia das audiências é também o mais pueril: aquilo que passa nos horários nobres está lá “apenas” porque é isso que os consumidores exigem.
Exigem? Eis uma curiosa visão do colectivo (que somos todos nós). A mesma lógica simplista poderia legitimar um contraponto igualmente infantil. Assim: se é isso que os consumidores exigem, por que não diversificar, colocando novelas e “reality shows” à uma ou duas horas da noite e transferindo os filmes e séries que começam por essa altura para o actual horário nobre? Seria, por certo, uma interessante via de transformação do mercado publicitário, com todas as agências a transferir os seus anúncios para as gloriosas madrugadas.
Caricatura? Sem dúvida, mas não nasce do trabalho crítico. Resulta das dinâmicas dominantes na oferta televisiva e também, atrevo-me a dizê-lo, de uma militante vontade (desta vez sem aspas) de desconhecer a diversidade dos espectadores. Seria, aliás, interessante pensar o que faz com que haja sectores cada vez mais significativos desses espectadores a desistirem de consumir as televisões generalistas.