Henry Fonda YOUNG MR. LINCOLN (1939) |
Em vésperas de eleição de um novo Presidente dos EUA, a história do cinema traz-nos muitas memórias de Hollywood; afinal de contas, a “fábrica dos sonhos” tem sido também uma empenhada observadora da política, seus jogos e atribulações — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Novembro), com o título 'Presidentes de Hollywood entre política e romantismo'.
Usando uma expressão da gíria política, podemos dizer que Hollywood nem sempre consegue “boa imprensa” nesta nossa velha Europa. A ironia é amarga, quanto mais não seja porque a mítica “fábrica dos sonhos” foi gerada com o envolvimento de muitos europeus. A percepção corrente de Hollywood é frequentemente reduzida a esquemas economicistas: sabemos quase tudo sobre os milhões que alguns filmes custam ou rendem mas, em particular no espaço televisivo, quase nada se diz sobre Hollywood como paisagem política que, com filmes “bons” ou “maus”, sempre reflectiu e problematizou as clivagens ideológicas da nação americana.
Assim, em vésperas da eleição do 45º Presidente dos EUA não fez muitas manchetes o facto de a Variety ter assumido uma posição sobre os respectivos candidatos. É verdade: pela primeira vez ao longo dos seus 111 anos de existência, a lendária publicação dedicada à indústria cinematográfica e televisiva (tradicionalmente apelidada “bíblia de Hollywood”) veio tomar partido na corrida eleitoral. Para a Variety, Hillary Clinton é, não exactamente a “melhor candidata”, mas a “única candidata”, sendo a candidatura de Donald Trump “nada mais que um esquema para conseguir mais um negócio televisivo ou lançar um novo canal do cabo, de modo a continuar a vomitar os seus pontos de vista sexistas e racistas”.
Quer isto dizer que, daqui a um ano ou dois, vamos poder descobrir algum épico sobre as eleições de 8 de Novembro? Qualquer coisa como “Clinton vs. Trump – The Final Countdown”? Ou talvez uma série televisiva ao estilo de House of Cards, expondo as grandezas e misérias do combate político?
Em boa verdade, tal especulação não tem nada de historicamente abusivo. Bem pelo contrário: desde os tempos do mudo que Hollywood se interessou pelos processos eleitorais e, em particular, pelas atribulações públicas e privadas dos Presidentes americanos. Observe-se o caso emblemático de Abraham Lincoln: o retrato proposto por Steven Spielberg no seu admirável Lincoln (2012) é apenas um dos exemplos mais recentes de uma galeria de dezenas de títulos que inclui duas realizações de David W. Griffith — O Nascimento de uma Nação (1915) e Abraham Lincoln (1930) — e o prodigioso Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford.
Young Mr. Lincoln constitui uma referência tanto mais importante quanto está longe de corresponder ao conceito mais tradicional (banalmente “literário”, se assim nos podemos exprimir) de biografia. Através de uma notável composição de Henry Fonda na personagem do “jovem Sr. Lincoln”, John Ford encenava o Presidente antes de o ser: o jovem advogado Abe Lincoln que, através de um caso de homicídio, descobre a sua vocação de líder — foi, aliás, lançado no mercado português como A Grande Esperança.
Para além dos filmes que, directa ou indirectamente, encenam o percurso de determinados Presidentes (Oliver Stone será, nessa perspectiva, o realizador recordista), há os que reflectem as nuances do sistema eleitoral antes da eleição propriamente dita. Um dos exemplos mais recentes, Os Idos de Março (2011), tem George Clooney na dupla condição de actor e realizador (além de co-produtor e co-argumentista), escalpelizando os jogos de bastidores de dois membros do Partido Democrata, um governador e um senador, que disputam a candidatura do seu partido.
O espírito crítico de Os Idos de Março está presente em títulos tão diversos como Os Candidatos (1964), de Franklin J. Schaffner, também sobre uma corrida presidencial, e The War Room (1993), documentário de dois mestres do género — Chris Hegedus e D. A. Pennebaker —, acompanhando as convulsões da campanha de Bill Clinton em 1992. Por vezes, a política surge contaminada pelos ideais amorosos, como acontece em Um Noite com o Presidente (1995), de Rob Reiner, centrado num Presidente viúvo (Michael Douglas) e na mulher (Annette Bening) que vai conquistar o seu coração. Dito de outro modo: para além da crueza da política, não é possível conceber Hollywood sem os sobressaltos do romantismo.