Decididamente, os padrões narrativos dos estúdios Disney estão em crise — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Novembro), com o título 'O particular e o universal'.
A abundância de herdeiros não garante a vitalidade de uma tradição. Veja-se, entre nós, a agonia do fado: quanto mais os fadistas “nascem das pedras da calçada” (para utilizar a linguagem de um delicioso momento de humor de Os Contemporâneos, em 2008, na RTP), mais os representantes dessa tradição são “obrigados” a assumir um modernismo postiço. Dir-se-ia que algo de semelhante está a acontecer com os desenhos animados e, em particular, com os estúdios Disney.
A estreia de Vaiana é sintomática, para mais surgindo assombrada por um conflito legal que, em vários países, incluindo Portugal, levou a mudar o título original Moana (marca registada de alguns produtos de perfumaria). O problema de fundo envolve a generalização dos recursos digitais, mesmo se nela não se esgota. É verdade que, por vezes, tais recursos tendem a criar imagens de uma “limpeza” simplista, em que já ninguém se distingue pela singularidade do corpo — compare-se com o velho Pinóquio (1940) e avaliem-se as diferenças. Acima de tudo, parece ter-se perdido o gosto pela criação de personagens que não se reduzam a um “simbolismo” simplista e, em boa verdade, decidido desde as primeiras cenas.
Moana ou Vaiana é a menina que vai, obviamente, fazer-se ao mar para lá do limite estabelecido pelo pai (a barreira de recife), mobilizando o semi-deus Maui para salvar o seu mundo paradisíaco... A possível dimensão épica de tudo isto é limitada por um método de banal acumulação de “números”, em que a canções de Lin-Manuel Miranda (na sua versão original, bem entendido) talvez constituam o trunfo mais elaborado e estimulante. O certo é que a preocupação de contar histórias “universais” faz perder os particularismos dramáticos — convenhamos que a tradição Disney é melhor que isso.
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PS [1] - O site oficial de Moana está em movies.disney.com/moana. O certo é que quando tentamos aceder a esse site, vamos parar a disney.pt; observe-se: movies.disney.com/moana — aliás, isto acontece já há algum tempo com todas as produções do estúdio. Na prática, a Disney impede o espectador português interessado em conhecer os sites dos seus filmes, impondo-lhe a entrada numa loja online. Escusado será dizer que tal dispositivo, além de deselegante, apenas contribui para manchar a imagem de marca dos estúdios e, em última instância, o prestígio do seu património. A globalização é o contrário desta mercantilização.
PS [2] - Exemplo ainda mais chocante — veja-se o que acontece quando tentamos aceder ao site oficial de uma obra-prima como Pinóquio: movies.disney.com/pinocchio.
PS [2] - Exemplo ainda mais chocante — veja-se o que acontece quando tentamos aceder ao site oficial de uma obra-prima como Pinóquio: movies.disney.com/pinocchio.