Werner Herzog faz o inventário da Internet, passado, presente e futuro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Novembro), com o título 'Herzog interroga o mundo da Internet'.
Esta semana, no panorama das estreias, deparamos com uma opção sugestiva e feliz: a actividade da nova empresa Cinema Bold (ligada à distribuidora Alambique) arranca com o lançamento do filme de Werner Herzog, Eis o Admirável Mundo em Rede. O projecto de difundir filmes “não alinhados” (o rótulo de “independentes” talvez já não seja suficiente) que nos convoquem de forma original para os temas mais diversos, e também mais actuais, fica bem ilustrado por este documentário que nos faz ver que talvez ainda não tenhamos prestado a devida atenção ao novelo de temas, problemas e perplexidades que o mundo virtual contém ou suscita.
Afinal de contas, é bem verdade que a evolução fulgurante da Internet continua a atrair uma beatitude pueril, não poucas vezes sancionada pela retórica mediática. Por exemplo, como podemos descrever a muito badalada Web Summit para além dos entediantes lugares-comuns que a envolveram? Foi um grande acontecimento pelas ideias que atraiu, produziu e divulgou, ou apenas porque a linha verde do Metro duplicou o número de carruagens?...
Werner Herzog |
Com a sua contagiante ironia, Herzog é o primeiro a reconhecer que a evolução das novas tecnologias envolve debates muito sérios e também fenómenos mais ou menos caricaturais. Um dos seus entrevistados é mesmo um criador de robots que jogam futebol, crente de que a sua equipa, um dia, reduzirá Cristiano Ronaldo a uma personagem banal... Porque não? O que importa reter é a evidência, também ela irónica, por vezes trágica, de que nada do que é humano está a escapar às convulsões deste admirável mundo em rede (ou do “mundo conectado”, traduzindo à letra a expressão que está no título original).
Em boa verdade, o documentário de Herzog segue uma lógica mais ou menos tradicional, combinando entrevistas com diversas personalidades (professores, investigadores, investidores) e uma voz off (do próprio realizador) que, com salutar distanciamento jornalístico, nos vai lembrando que o fascínio imediato dos factos da Internet pode e deve ser temperado pela interrogação mais extrema: através do mundo em rede, estamos a diversificar as conexões dos seres humanos ou, no limite, a transfigurar (e destruir) as mais ancestrais noções de humanidade e humanismo?
Escusado será sublinhar que estamos perante um filme de sedutora actualidade, confirmando a energia do olhar documental do veterano cineasta alemão (nascido em Munique, em 1942). E não deixa de ser irónico, também, que a sua obra se tenha afirmado através de títulos tão peculiares como Aguirre, a Cólera de Deus (1972) ou Nosferatu, o Fantasma da Noite (1979), em que a utopia, o sonho e o pesadelo funcionavam como caminhos de superação dos limites de qualquer existência normal. Dir-se-ia que Herzog redescobriu as delícias do fantástico através do didactismo do género documental.