quinta-feira, novembro 03, 2016

"A Regra do Jogo" — reedição em DVD

Apesar de tudo, os clássicos continuam a marcar uma presença forte no mercado do DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Outubro), com o título 'Os novos espectadores clandestinos'.

Tempos houve em que a possibilidade de ver ou rever um clássico como A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir, era um acontecimento central para a cinefilia e, em boa verdade, para todo o mercado cinematográfico. Agora, a sua reedição em DVD (desta vez com chancela da Alambique Filmes) constitui uma espécie de dramático “não-acontecimento”. Vivemos num contexto mediático em que a mediocridade dominante da blogosfera e outros domínios “sociais” ignora, pura e simplesmente, o nome de Renoir (mesmo quando se fala do seu pai, o pintor Pierre-Auguste Renoir).
Não é uma questão específica da crítica que está em jogo (mesmo se não deixa de ser curioso recordar que, na última votação internacional da revista britânica Sight & Sound, A Regra do Jogo surge em quarto lugar no top dos melhores filmes de sempre). Nem é um assunto que se possa reduzir à redução do território do DVD, de uma maneira ou de outra reconhecida por todos os agentes do mercado.
JEAN RENOIR
(1894-1979)
Trata-se, de facto, de um problema genuinamente social (desta vez, sem aspas) que envolve as perversas relações entre o consumo e os valores dominantes do chamado espaço cultural (sem esquecer que a dinâmica desse espaço decorre também das opções tomadas, ou menosprezadas, na cena política). Assim, aceder a um filme como A Regra do Jogo é uma possibilidade que, além de ser considerada por poucos consumidores, passou a envolver qualquer coisa de clandestino.
Duas razões principais contribuem para tal estado das coisas. A primeira é a percepção dominante do cinema como uma “coisa” sem passado, quer dizer, sem património — no caso de A Regra do Jogo, sendo um filme com imagens a preto e branco, há mesmo um preconceito violento que, na melhor das hipóteses, poderá encarar Renoir como uma curiosidade mais ou menos pitoresca. Depois, vivemos sob o jugo de uma ideologia “ilustrativa” que confunde a complexidade da história colectiva com a agitação anódina de muitos “directos” do espaço televisivo.
Será preciso recordar que A Regra do Jogo é um filme de uma perturbante actualidade temática e simbólica? Através de uma reunião de notáveis numa propriedade da região da Sologne, Renoir (realizador, actor e argumentista) encena uma trepidante comédia de costumes que, envolve, afinal, um sentimento premonitório — estreado em Paris cerca de dois meses antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, o filme entrou (também) para a história como um sintoma cristalino das angústias do seu presente.
Provavelmente, uma das componentes mais intensas e duradouras de A Regra do Jogo é a sua metódica exposição das diferenças sociais. Muito para além de qualquer ilusão colectiva, Renoir revela as profundas clivagens (e diferenças de poder) entre grupos e classes. É uma lição política exemplar, sobretudo num tempo em que somos levados a confundir a democracia com a partilha dos mesmos links.