segunda-feira, outubro 03, 2016

Há um Bowie para cada um de nós


Senti algumas afinidades com o que Paul Morley me ia contando ao longo das páginas daquele que, entre os muitos títulos editados nos últimos meses (e os muitos mais que se seguirão), é certamente um dos primeiros livros publicados depois da notícia que nos acordou na manhã de 10 de janeiro que acrescentam de facto algo ao que as várias biografias e os retratos magnificamente ordenados nas várias edições de The Complete David Bowie de Nicholas Pegg já antes nos tinham contado. E não foram o facto de, ao longo desse dia, ter tido o telemóvel permanentemente a tocar, solicitando um depoimento para uma rádio, estação de televisão ou jornal, nem mesmo a curiosa coincidência de ambos termos descoberto Bowie com a mesma idade. Mais velho do que eu dez anos, Paul Morley escutou-o pela primeira vez na rádio, num programa de John Peel, em 1970, pouco depois de Space Oddity lhe ter dado (finalmente) um primeiro episódio de sucesso. A minha vez chegou em 1980, ao som de Scary Monsters, também num programa de rádio. Ele comprou então o seu disco mais recente e uma antologia que lhe permitiu conhecer o que ficara para trás (e na verdade havia discos a fazer uma história desde 1964). Fiz o mesmo. E numa antologia descobri então Heroes, Sound and Vision, Starman, Life on Mars... A partir de 1980 estávamos em sintonia. E ao ler The Age of Bowie não podia ter encontrado palavras mais sentidas, conhecedoras e capazes de suscitar novos focos de reflexão a partir da música, das imagens e das ideias do músico que mais admirava (e podemos manter o tempo no presente).

É um livro pessoal. Mas não o são todos? E logo entre as primeiras páginas, além de recordar esse 10 de janeiro e outros momentos recentes em que Bowie marcara presença na vida deste que é um dos mais interessantes nomes do jornalismo musical britânico, Paul Morley deixa claro que havia um Bowie para cada um de nós. Fruto de uma vivência particular, mas não só aberto a uma multidão de estímulos e experiências, como dotado de uma inquietude que cedo o levou a questionar tudo e a ensaiar os mais inusitados cruzamentos, Bowie criou uma obra que encontra em cada um de nós uma forma muito pessoal de nos estimular. E todos diferentes, todos diferentes (e ainda bem, que não há valor que nos caracterize mais a cada um do que a nossa individualidade), esta foi uma obra que definiu assim a possibilidade de haver um Bowie para cada um de nós. Mesmo tendo muito em comum de Paul Morley, o “meu” Bowie era, necessariamente, diferente do dele. Através deste livro o jornalista faz o retrato, tão capaz de juntar factos como de os explicar e depois comentar, daquele que é o “seu” David Bowie (e desse podemos, cada um de nós, partir para pensar depois o “nosso”). E o "seu" Bowie é, sobretudo, o dos anos 70.

Ao concentrar o grosso deste volume num atento olhar, ano a ano, dos acontecimentos (e suas repercussões) que marcaram a vida e obra de David Bowie entre 1970 e 1980, não quer dizer que The Age of Bowie exclua o que sucedeu antes e o que veio depois. De resto, quase tão detalhado quanto o é o conjunto de olhares sobre os anos 70, Paul Morley encontra nas memórias de infância nos anos 50 e nas primeiras experiências musicais nos anos 60 as fundações de tudo aquilo que, a seu tempo, Bowie tomaria como as fundações de uma personagem maior. Das vivências com o jazz (que vinham de casa) à sempre perturbante relação com um irmão que viveu parte da sua vida numa instituição psiquiátrica (e que nos anos 90 seria a fonte de inspiração de Jump They Say), passando pelas assimilações das heranças de Andrew Newley, dos Velvet Underground (contando depois de forma magistral o primeiro encontro com Warhol no qual só os seus sapatos dourados causaram boa impressão) ou de importantes relações com o teatro e as artes performativas, partem elementos sobre os quais Paul Morley constrói o “seu” Bowie. Depois de Scary Monsters (onde, portanto, comecei eu a fazer o “meu” Bowie), o percurso é mais sucinto, mas igualmente completo, com espaço de detalhe maior em volta da derradeira obra-prima que foi o álbum Blackstar deste ano.

Paul Morley cresceu na zona de Manchester, escreveu no NME entre 1977 e 1983, tendo então acompanhado de perto a eclosão das movimentações pop/rock da cidade em tempo de afirmação da Factory Records (tem, de resto, livros publicados sobre os Joy Division). Depois dessa etapa fundou, com Trevor Horn, a ZTT Records, para a qual ajudou a criar um discurso que teve protagonistas maiores os Art of Noise e Frankie Goes to Hollywood. Presentemente colabora com a BBC. Foi consultor da exposição David Bowie Is que em 2013 história nas salas do Victoria & Albert Museu (e ainda anda a correr mundo), pelo que traz agora às páginas deste livro algumas das frases “David Bowie is...” que íamos lendo ao longo das salas, juntando às que ali estavam outras que, agora, alargam mais ainda o espectro de observações. E, desses dias, junta ainda aqui os textos que fez nos dois dias em que – durante a exposição – foi protagonista de um programa extra que o levou a estar na bilheteira do museu durante dois dias a escrever, ao vivo (com um ecrã no qual todos podiam ler o que teclava), à medida que os visitantes iam entrando e saindo do museu.

No fim, as páginas de The Age of Bowie traduzem, através do “seu” Bowie, um espaço onde factos, a sua inserção nos contextos, a sua explicação e todo um conjunto de reflexões e memórias pessoais, um novo conjunto de pontos de vista que, mesmo que não sejam os nossos, são pistas para compreender não apenas a obra, mas também a sua relação com alguém que a acompanhou. Ao leitor cabe, depois, o trabalho de fazer o seu Bowie respetivo.