segunda-feira, outubro 31, 2016

As narrativas de José Sócrates

Variety, 25 Out. 2016
[Batman, personagem do património da Warner
e o símbolo da At&T]
A televisão é um mapa de narrativas: três anos depois, a palavra que era "ridícula" quando usada por José Sócrates tornou-se uma moda mediática — esta crónica foi publicada no Diário de Notícias (28 Outubro), com o título 'Um país de narrativas'.

1. Os recentes movimentos da AT&T (empresa multinacional de comunicações com sede em Dallas, Texas) no sentido de adquirir a Time Warner são reveladores de uma conjuntura realmente global: os canais de difusão mostram o seu apetite pelos produtores de “conteúdos”. Na sua complexidade financeira (poderão estar envolvidos 85 mil milhões de dólares), o potencial negócio não constitui, em si mesmo, garantia de uma “melhor” ou “pior” televisão. Mas não tenhamos dúvidas: está em jogo uma “outra” televisão, muito para além da ensimesmada discussão dos trágicos efeitos normativos com que a ideologia da CMTV tem contaminado o nosso pequenino espaço audiovisual.

2. Que personagens de todo o espectro político, do puritanismo da direita ao voluntarismo da esquerda, se unam na mesma indiferença por tal catástrofe jornalística e cultural, eis o que diz bem da sua percepção da paisagem televisiva. Não que deles esperemos uma distribuição de “culpas”... Infelizmente, nada é tão simples. Acontece que, há muitos anos, a esmagadora maioria dos actores da cena política parece não ver no espaço audiovisual outra coisa que não seja uma montra da sua própria “actividade”, numa vertigem orgulhosamente sem objecto. Como escreveu Hannah Arendt, a política passou a “banir-se a si própria do mundo”.

3. Na melhor das hipóteses, tão pobre espectáculo concede-nos o sabor amargo de um humor involuntário. Observe-se a burlesca proliferação do conceito de “narrativa”. Subitamente, passou a ser chique dizer que a luta política é também um jogo de “narrativas” que se cruzam ou colidem. Três anos depois de José Sócrates ter sido “socialmente” escarnecido pelo uso da palavra “narrativa”, olhamos à nossa volta e parece que o mundo foi invadido por um exército de discípulos do ex-ministro — dir-se-ia a versão lusitana de The Walking Dead.