Os Beatles estão de volta através de um notável documentário/ensaio de Ron Howard: este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Setembro), com o título 'Bando à parte'.
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Vale a pena sublinhar a ironia implícita no título do filme de Ron Howard. The Beatles: Eight Days a Week integra uma referência a uma canção emblemática (Eight Days a Week surgiu como primeira faixa do lado 2 do LP Beatles for Sale, lançado em finais de 1964), ao mesmo tempo que consagra uma sarcástica medida do tempo: “oito dias por semana”. Aliás, tão sarcástica quanto romântica, uma vez que a letra proclama um cristalino axioma: “Eight days a week/I love you”. Na verdade, os Beatles podem ser vistos também como uma entidade que introduziu novas medidas no tempo — da criação artística, da percepção do mundo, enfim, da relação do individual com o colectivo.
À distância de meio século, alguns factos parecem querer encaixar uns nos outros como se a história das formas artísticas resultasse de uma metódica e pudica geometria, necessariamente fluida, porventura indecifrável no momento em que vivemos as coisas. Em 1964, a sensação de que o mundo podia estar à beira da auto-aniquilação nuclear estava enunciada através do humor muito negro de Stanley Kubrick, em Dr. Estranhoamor, esse filme desvairado como um concerto dos Beatles cujo subtítulo era “Como aprendi a não me preocupar e adorar a bomba”. E até mesmo a contaminação entre documentário e ficção, que hoje nos pode parecer uma evidência sem história, surgia de modo genuinamente ousado no filme português Belarmino, de Fernando Lopes. Isto sem esquecer que, ainda em 1964, Jean-Luc Godard filmava Anna Karina, Claude Brasseur e Samy Frey como frágeis herdeiros do classicismo de Hollywood. O filme passava-se em Paris e não eram os Beatles que se ouviam, mas Jean Ferrat. O certo é que se chamava Bando à Parte, expressão adequada para qualquer colectivo que saiba estar no centro do mundo.