segunda-feira, agosto 01, 2016

Perante as imagens do Papa em Auschwitz

FOTO: Radek Pietruszka/EPA (DN)

Imagens de excepção: as fotos do Papa Francisco em Auschwitz — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Julho), com o título 'Pedagogia televisiva em Auschwitz'.

Algumas formas de apresentar imagens no espaço televisivo passaram a estar contaminadas pelos efeitos de um rudimentar princípio simbólico — desde o novo penteado de Cristiano Ronaldo até ao último disparate proferido por um qualquer “famoso”, tudo parece remeter para uma dimensão alternativa, de uma riqueza “espiritual” idêntica aos desastres filosóficos protagonizados pelos patéticos concorrentes de Love on Top.
Por vezes, esse fluxo de banalidades é interrompido por imagens que, realmente, desafiam qualquer percepção irresponsável do mundo à nossa volta. Mais do que isso: são imagens que nos compelem a olhar a televisão muito para além de qualquer ilusória transparência, quer dizer, como um complexo sistema de representar esse mundo, capaz de contrariar a norma populista e convocar a inteligência de cada espectador.
Entrada de Auschwitz
FOTO: Natalie Valanchon
UNESCO
As imagens da visita do Papa Francisco ao campo de concentração de Auschwitz pertencem a essa categoria de imagens de excepção. Claro que o vimos também em muitas e extraordinárias fotografias reproduzidas em jornais de todo o mundo [esta crónica é ilustrada por uma delas, porventura das mais depuradas e tocantes]. De qualquer modo, as imagens difundidas pelas televisões possuíam um suplemento dramático (simbólico, precisamente) que importa reconhecer e sublinhar.
Assim, o Papa fez questão em entrar em Auschwitz, a partir do portão com o ignominioso lema dos nazis (“o trabalho liberta”), sem proferir qualquer discurso. Em termos mediáticos — e, muito concretamente, televisivos —, tal atitude gerou imagens apenas marcadas pelos sons do lugar, incluindo, neste caso, inevitavelmente, os ruídos reconhecíveis das câmaras dos fotógrafos. Para além do carácter específico da visita, tratava-se de protagonizar imagens que, em poucos instantes, teriam a intensidade de uma corrente simbólica universal — nenhuma palavra proferida, apenas a força de estar ali.
Nada disto anula a renovada importância de recordar o Holocausto através de palavras precisas e contundentes. Foi isso, aliás, que fez o cineasta francês Claude Lanzmann no seu monumental Shoah (1985): não apenas “evocar” o extermínio dos judeus pelos nazis, mas dizê-lo — colocar em palavras as suas memórias — através de conversas com sobreviventes e perpetradores.
Em qualquer caso, importa também não menosprezar a singularidade mediática da postura do Papa Francisco, recusando ceder à “obrigação” corrente de um qualquer discurso normativo sobre as imagens. Não há, aqui, nenhuma demonização do território televisivo. Bem pelo contrário: o que se procura é uma integração em tal território que não ceda às facilidades correntes das mais diversas formas de “palavreado”. Eis uma fundamental pedagogia: a televisão não é um mero difusor de imagens, já que nos obriga a pensar que imagens difundimos, como as difundimos e que palavras com elas combinamos.