quarta-feira, agosto 17, 2016

Para (re)descobrir Nina Simone


Repartindo protagonismo com os filmes que colocaram as memórias de Kurt Cobain e Amy Winehouse na rota dos grandes festivais de cinema (e até das estreias comerciais em sala) de 2015, o documentário What Happened, Miss Simone?, de Liz Garbus, teve, inicialmente, uma vida mais discreta. Esteve em poucos (muito poucos) festivas e acabou sobretudo destinado a uma exposição televisiva, o que era de resto a sua intenção original. O filme, que não limita um olhar sobre Nina Simone aos seus feitos na música, cruzando (e bem) as relações da sua obra artística com as suas ideias (e ações) políticas e a instabilidade emocional que teve depois profundo impacte em si, acabou por ser uma nova janela para a muitos permitir uma (re)descoberta de uma das mais incríveis cantoras do século XX. E os primeiros frutos desse interesse renovado surgem num pacote de edições que, entre uma caixa em CD ou uma série de prensagens em vinil, devolvem às estantes dos novos lançamentos os discos que editou pela Phillips entre 1964 e 1967. E entre os quais estão alguns dos melhores, mais aclamados e influentes da sua discografia.

Dada a dimensão maior da obra, este é um período relativamente curto, mas intenso. E abre com Nina Simone in Concert (1964), uma edição de um registo captado ao vivo (com acompanhamento de um quarteto de jazz) que corresponde ao primeiro momento em que uma canção de temática claramente política tem um peso maior num disco de Nina Simone, fazendo de si desde logo uma voz na linha da frente da luta (em curso) pela igualdade de direitos civis. Ao cantar Mississippi Goddam, canção de sua autoria explicitamente focada num caso de violência recente em Birmingham, no Alabama, Nina Simone não só criava um dos seus “clássicos” como dava voz a uma luta que era também sua. 

Segue-se Broadway... Blues... Ballads (1964), um espantoso exercício de assimilação de um registo mais clássico, com arranjos orquestrais, que evidencia as características dramáticas da voz de Nina Simone e que antecede I Put a Spell On You (1965), um dos seus discos de estúdio mais arrepiantes pelo qual passam, além da leitura arrebatadora do tema-título, duas composições de Charles Aznavour e uma versão de Ne Me Quitte Pas de Jacques Brel que mostra como o poder da interpretação vale bem mais do que o domínio da pronuncia de uma língua.

Há novas marcas assimiladas e transformadas de heranças do sul e da ruralidade americana em Pastel Blues (1965) e ecos do grande songbook americano em Let it All Out (1966), discos aos quais se seguiu o magistral Wild is the Wind (1966), que ninguém diz ser possível que se trate, na verdade, de um álbum de “sobras” de gravações de sessões anteriores. Na verdade este disco tem a força e versatilidade características de qualquer dos grandes álbuns de estúdio de Nina Simone nesta etapa e guarda em si alguns momentos maiores da sua obra em disco como Lilac Wine, Either Way I Lose (com delicioso sabor pop) ou o tema-título de uma canção que, anos depois, David Bowie cantaria no alinhamento do álbum Station to Station.

Este troço cheio de acontecimentos e grandes discos na obra de Nina Simone encerra com o histórico High Pristress of Soul (1967) álbum que encerra em glória a essência de um processo que esta etapa documenta: a da transição de uma vivência inicial trilhada no jazz para os domínios da música soul, afinal um espaço de afirmação maior da música negra norte-americana nos anos 60 (e que teve assim em Nina Simone uma grande protagonista).

Perante tão importante obra é pena que a reedição não se faça acompanhar de um booklet que nos contextualize a obra no quadro da discografia de Nina Simone e dos cenários intensos (musicais e políticos) que eram pano de fundo no tempo em que estes discos nasceram.