domingo, agosto 07, 2016

O "professor" e o "aprendiz"

Winona Ryder e Peter Sarsgaard
Num panorama dominado pelas vulgaridades de super-heróis, eis que surge um pequeno grande filme da produção independente americana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Agosto), com o título 'Como e porquê obedecemos à autoridade?'.

Estranho e fascinante filme: proveniente da área independente do cinema americano, produzido com apoio dos festivais de Sundance e Tribeca, Experimenter é, de facto, um dos grandes acontecimentos deste Verão cinematográfico — além do mais, com ressonâncias temáticas, políticas e simbólicas profundamente actuais.
O argumentista e realizador Michael Almereyda (assinou, em 2000, uma ousada actualização de Hamlet, protagonizada por Ethan Hawke) começa por nos apresentar as experiências conduzidas por Stanley Milgram (Peter Sarsgaard), em 1961, na Universidade de Yale. No essencial, trata-se de colocar dois seres humanos, em salas contíguas, mas separadas, na posição de “professor” e “aprendiz”. O primeiro questiona o segundo sobre algumas associações de palavras que foram lidas no começo da experiência; através de um circuito eléctrico previamente montado, cada resposta incorrecta deve ser punida com um choque eléctrico administrado pelo “professor” — a obrigação dessa punição constitui mesmo um dos princípios básicos de organização de toda a experiência. A acumulação de erros implica choques de potência cada vez mais elevada, instalando-se a sensação de que o “aprendiz” pode mesmo ter a sua vida ameaçada...
Que está em jogo, afinal? Qual o objectivo fulcral da experiência? Importa preservar o suspense que a situação envolve. Em qualquer caso, podemos dizer que Milgram se interessava pela tensão entre a consciência moral de cada indivíduo e a sua disponibilidade (ou resistência) para obedecer a um determinado sistema de autoridade. De forma muito concreta e dramática: até que ponto o “professor” vai continuar a obedecer à regra de castigar o “aprendiz” com choques eléctricos, mesmo sabendo da possibilidade de a experiência o matar?
Judeu americano, nascido em Nova Iorque em 1933, Milgram foi especialmente marcado pelas memórias do Holocausto, transmitidas por elementos da sua própria família, sobreviventes de campos de concentração. Mais do que isso, o julgamento do oficial nazi Adolf Eichmann, por altura das suas experiências, foi determinante no seu empenho em analisar o sentido de responsabilidade e os mecanismos de responsabilização do ser humano (recorde-se que Eichmann tentou justificar o seu envolvimento na Solução Final, “argumentando” que se limitara a gerir o transporte dos que seriam mortos nos campos).
O que é francamente invulgar no filme de Almereyda é a capacidade de nos expor as ideias e as experiências de Milgram, não como uma curiosidade “técnica”, antes como um processo que marca todas as suas relações com os outros, a começar pela sua mulher e colaboradora, Alexandra ‘Sasha’ Milgram (Winona Ryder). Mais do que isso: o estrito realismo das situações de experimentação surge subtilmente articulado com um calculado artifício (em particular no tratamento cenográfico) que situa o filme algures a meio caminho entre a evocação didáctica de Milgram e uma certa derivação lúdica dos pressupostos do seu trabalho.
Com meios de produção obviamente reduzidos, Almereyda explora mesmo uma certa “teatralização” dos espaços que faz lembrar o trabalho de veteranos da produção independente como Mark Rappaport (autor do lendário The Scenic Route, de 1978). Em tudo e por tudo, a memória é uma boa conselheira.