quarta-feira, agosto 10, 2016

Cinema e multidões ululantes

De um lado, um ilustre desconhecido chamado George Clooney... Do outro, filmes como Esquadrão Suicida capazes de induzir manifestações de uma cultura virtual que se distingue apenas pelo ruído e pela intolerância — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Agosto), com o título 'A “razão” cultural das multidões'.

Segundo uma notícia publicada em The Hollywood Reporter (2 Agosto), circula na Net uma petição contra o site Rotten Tomatoes. Motivo? Nos seus conteúdos, há uma abundância de críticas negativas a Esquadrão Suicida, filme de super-heróis há poucos dias lançado em todo o mundo.
Vale a pena tentar lidar com o facto para além das armadilhas conhecidas, a começar pela oposição maniqueísta entre críticos e espectadores. Porquê? Porque colocar no mesmo plano conceptual o labor da opinião e os números das bilheteiras é tão legítimo como convocar as estatísticas de acidentes de automóveis com condutores alcoolizados para discutir a excelência dos vinhos portugueses...
De facto, Rotten Tomatoes nem sequer é um espaço de intervenção crítica, mas um site que colige textos de todo o mundo, a partir daí calculando percentagens de leituras “positivas” e “negativas” (favorecendo também, a meu ver, um triste simplismo mental). Além do mais, a petição não é feita em nome de qualquer leitura do filme, mas sim para lembrar que “é possível gostar de um filme independentemente daquilo que os críticos dizem sobre ele”. Tanto barulho para lembrar que cada um pensa pela sua cabeça? Mas quem é que pôs isso em causa?
Ironia à parte, importa observar o sintoma cultural que aqui se exprime. Decorre de uma cultura virtual que menospreza as diferenças de ideias e o confronto que delas pode nascer, optando sempre pelo conflito mais ou menos brutal. Sugere-se mesmo que uma multidão ululante (por exemplo, em torno de um filme) é uma entidade produtora de uma “razão” que se deve sobrepor, em termos sociais e no plano simbólico, a qualquer outra instância que não confirme a sua delirada abrangência.
A questão envolve uma perturbante interrogação democrática — e para as democracias. A saber: como se produzem maiorias? Mais do que isso: de que modo, ou até que ponto, as suas “razões” são socialmente legitimadas pelo ruído mediático que geram ou induzem?
Simplificando, creio que podemos ficar pelo reconhecimento de um devastador empobrecimento cinéfilo: as nossas relações com os filmes, naturalmente contrastadas e contraditórias, são assim reduzidas a uma luta livre computorizada que, no limite, se satisfaz com a acumulação de polegares ao alto.
Por contraste com o impacto de Esquadrão Suicida, penso na discreta vida comercial de filmes como Salve, César! [já disponível em DVD], dos irmãos Coen (estreado em Fevereiro deste ano). Como é que uma comédia com George Clooney e Scarlett Johansson cumpre uma carreira comercial tão discreta, para não dizer medíocre? Acontece que se trata de um filme sobre o passado do próprio cinema, retratando um tempo (1951) em que Hollywood não fazia filmes de super-heróis... Hoje em dia, o culto da memória (cinéfila, justamente) não é um valor com mercado. É triste, mas não vou lançar uma petição sobre o assunto.