sábado, julho 09, 2016

Ronaldo e o microfone da CMTV

Da atitude de Cristiano Ronaldo face a um repórter da CMTV à reacção da própria CMTV, eis uma saga revelador do estado das coisas (mediáticas e não só) no nosso país — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (8 Julho), com o título 'Fábula com microfone'.

1. Sou dos que pensam que Cristiano Ronaldo fez mal em deitar à água o microfone de um repórter da CMTV. Nada a ver com os seus méritos desportivos, muito menos com qualquer apreciação do futebol da selecção. Acontece que o capitão de uma equipa que representa um país pode (e, a meu ver, deve) denunciar a mediocridade populista que tomou conta de algumas formas de fazer televisão; se não o faz (ou não o quer fazer), deitar microfones à água pode dar vídeos adequados à preguiça mental de muitas redes da Net, mas não é boa pedagogia social.

2. Reconhecer a atitude pueril do jogador não significa legitimar a programação da CMTV. A saber: uma colagem grosseira de “choques” e “escândalos” que, ponto por ponto, anula todas as componentes mais básicas da postura jornalística. Que postura? O interesse pela complexidade do real, não a sua redução a um simplismo descritivo e a uma boçalidade narrativa em que um qualquer crime de sangue numa aldeia esquecida do fim do mundo pode ser tratado com mais relevo que o programa nuclear do Irão. Entretanto, na saga do microfone, o folhetim montado em torno da recuperação do dito (incluindo dois garbosos mergulhadores) tem rivalizado com o saudoso burlesco d' O Tal Canal, de Herman José.

3. Ao mesmo tempo, passou pelas televisões uma vaga de celebração do gesto de Ronaldo, precisamente porque foi contra um microfone da CMTV. Curioso, sem dúvida. Onde estavam os militantes da pureza jornalística quando José Sócrates era todos os dias achincalhado por idênticas formas de “reportagem”? Como sempre, lembrar tais eventos não significa qualquer santificação do visado (ou de quem seja sujeito a semelhante tiro ao alvo mediático). Trata-se apenas de não ceder à indiferença — que aconteceria neste país se o mesmo Sócrates se atrevesse a tocar num microfone da CMTV com a modesta pontinha de um dedo?