segunda-feira, julho 04, 2016

As musas de José Luis Guerin (2/2)

Ao filmar A Academia das Musas, o espanhol José Luis Guerin desafia as fronteiras tradicionais entre documentário e ficção, cinema e literatura — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Junho), com o título 'Elogio da inteligência'.

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Num dos filmes que podem definir as convulsões da modernidade — Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967) [cartaz] —, Jean-Luc Godard celebrava uma assombrada lucidez que leva a reconhecer que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Afinal de contas, filmamos não porque o mundo se deixe reproduzir, antes porque qualquer reprodução é também uma forma de redistribuir e repensar todas as relações desse mesmo mundo. Com A Academia das Musas, o espanhol José Luis Guerin prolonga tal atitude, não apenas desafiando as fronteiras tradicionais entre documentário e ficção, mas também convidando-nos a questionar o que, por razões de educação ou conjuntura, somos levados a encarar como um dado adquirido.
O amor, por exemplo. E se o amor tivesse sido “inventado” pela literatura? Mais do que isso: e se a sua celebração envolvesse uma “conspiração” arquitectada pelos homens, apostados em impor os seus desejos como princípio de definição das mulheres? A Academia das Musas é esse filme insensato que sugere uma conspiração cultural do masculino, historicamente cega a uma verdade radical que circula no interior do espaço feminino.
Compreende-se o risco imenso que Guerin assume. Basta observarmos a desvergonha de linguagem e a obscenidade triunfante de Love on Top (e outras derivações do Big Brother televisivo). Num mundo que promove tais horrores como coisa “normal” e quotidiana, o cinema pode ser um desses derradeiros redutos em que criadores e espectadores não abdiquem da inteligência das linguagens e do exercício dos seus poderes específicos, resistindo à instrumentalização dos comportamentos humanos. Nesta perspectiva, A Academia das Musas, mais do que um filme sobre o amor, é um panfleto a favor da arte de pensar e do seu tão ignorado erotismo.