sexta-feira, julho 01, 2016

As musas de José Luis Guerin (1/2)

FOTO: Pedro Rocha / DN
Ao filmar A Academia das Musas, o espanhol José Luis Guerin desafia as fronteiras tradicionais entre documentário e ficção, cinema e literatura — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (27 Junho), com o título '"Não gosto de julgar as personagens"'.

O seu filme A Academia das Musas, com o professor e as alunas a falar continuamente sobre o amor e as suas configurações literárias, pode suscitar um velho preconceito segundo o qual nada acontece porque são “apenas” pessoas a falar... Que resposta daria a uma visão desse género?
Seria uma resposta muito respeitadora. Seja como for, na minha perspectiva, é um filme com muito movimento em que acontecem muitas coisas. Teoricamente, não falam senão de literatura, sonetos, livros, como quem organiza uma biblioteca. Mas creio que qualquer espectador pode constatar que é outra coisa que está em jogo: são relações de poder, seduções, ciúmes, instrumentalizações — coisas que, em última análise, dizem respeito a todos nós. Na montagem, estive muito atento para que fosse possível seguir o movimento do próprio pensamento.

Como criador do filme, identifica-se com alguma personagem?
Não, nenhuma, nenhuma deles me representa, ainda que goste de todas e atenda às razões de todas. Não sou um cineasta moralista que goste de julgar ou condenar as personagens — gosto de as descobrir, acompanhá-las, problematizar os seus discursos e palavras, deixando sempre que o espectador possa fazer o seu próprio juízo.

Passa pelo filme a ideia de que o amor é uma “invenção literária” — parece-lhe que se trata de uma ideia enraizada nas nossas sociedades?
Será um paradoxo, porque a palavra está muito desvalorizada — fala-se muito mal. Mas é um facto que no amor há uma parte, pelo menos, que envolve uma construção algo literária, de maneira bem diferente do que acontece nas redes das novas tecnologias.

Mas a própria Internet, como a certa altura alguém sugere no filme, também existe como uma construção literária.
Assim é. As personagens dizem muitas coisas, por vezes lúcidas, outras disparatadas — e é interessante descobrir as contradições entre o que dizem e o que sentem. Provavelmente, por exemplo, a mulher do professor surge como uma pessoa muito lúcida para depois revelar uma faceta de mãe castradora É ela que diz que o amor é a pior invenção dos poetas para enganar as mulheres. O que não impede que, no final do filme, para além das experiências pedagógicas, seja a única que, honestamente, acredita no amor.

Como se, ao longo dos séculos, o amor tivesse sido uma invenção dos homens, não das mulheres — e, por vezes, dos homens contra as mulheres. Será isso?
Para lá do amor em si, há uma instrumentalização do amor que dificilmente escapa às relações de poder. Nas relações entre as pessoas há sempre formas de poder. Por vezes, é grosseiro o modo como as pessoas se referem ao poder como coisa abstracta, como se fosse algo que incumbe apenas a algumas elites. Ora, todos exercemos algum poder na maneira como nos relacionamos — é impossível que as relações de amor escapem a tudo isso. Eu próprio, ao filmar, na medida em que tenho uma câmara e uma pessoa em frente, exerço um poder.

Há uma encenação que controla tudo aquilo que está no filme ou é tudo improviso?
Podemos falar de uma improvisação controlada. É um filme de ficção em que partimos de hipóteses que são pura fantasia, mas com algumas particularidades: o professor é professor na vida real, a mulher é a sua mulher, as alunas são as suas alunas — a partir daí, tudo é uma construção de ficção, embora procurando emoções verdadeiras. É verdade que, por vezes, fui eu que instiguem as situações, mas também é verdade que as situações adquiriram vida própria, de tal modo que as personagens as conduziram muito mais longe do que previra.

Portanto, os diálogos não estavam todos escritos.
Não, não estavam. A minha habilidade, se é que me posso exprimir assim, consistiu em escolher pessoas que têm um grande poder sobre a linguagem, capazes de gerar estas situações. Por vezes, usam frases incríveis, próprias de trovadores. Por exemplo, nas cenas em Itália, o professor diz a uma aluna: “Eu sabia que o teu desejo me pertencia” — é uma frase impossível de escrever e dar a um actor; só quem se mova nestes registos a pode dizer com propriedade e convicção. O mais bonito de tudo isto é que eu fui o primeiro espectador surpreendido com a própria evolução do filme.

Abbas Kiarostami
Nesse sentido, pode dizer-se que o filme é um pouco (ou muito) documental?
Creio que é um filme de ficção, claramente, mas que eu não teria sabido abordar desta maneira sem a minha experiência prévia no documentário. Há um desejo neste filme que será mais comum no documentário do que na ficção — tem a ver com o facto de não saber onde é que o filme me vai conduzir, de o descobrir a pouco e pouco. É um desejo que procura uma forma de revelação, de encontrar algo que me transcende.

Esse tipo de trabalho tem alguma inspiração na própria história do cinema, noutros cineastas?
Sem dúvida que sim, não vou ter a pretensão de dizer que é a primeira vez que se faz um filme desta natureza. O que posso dizer é que estava preocupado com as minhas personagens e a evolução orgânica do filme, sem pensar em referências cinéfilas. De qualquer modo, não seria possível fazer A Academia das Musas se não existissem os filmes de Jean Rouch e Roberto Rossellini, ou filmes como Close-up, de Abbas Kiarostami.

Terminado o filme, sente que envolveu também, para si, algum tipo de aprendizagem sobre o amor?
Sem dúvida, qualquer filme envolve alguma aprendizagem. E neste, para além do amor, está em jogo a ambivalência das palavras e, por fim, o problema do ensino, convertendo o literário em vivência.