domingo, junho 05, 2016

O cinema das famílias francesas

Mathieu Amalric, Karin Viard, Gilles Lellouche e Marine Vacth
Jean-Paul Rappeneau está de volta à realização, apostado em revitalizar uma tradição eminentemente francesa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Junho), com o título 'Atribulações familiares encenadas pelo veterano Jean-Paul Rappeneau'.

Com a estreia de Que Famílias! (título original: Belles Familles), reencontramos Jean-Paul Rappeneau, um dos mais velhos cineastas franceses em actividade (completou 83 anos a 8 de Abril). Para o melhor e para o pior, ele é herdeiro de uma tradição dramática (e melodramática) que permaneceu desde meados do séc. XX, mesmo através das convulsões da Nova Vaga. Dois vectores são fundamentais na sua definição: em primeiro lugar, uma atenção constante, entre a sociologia e a ironia, às convulsões do espaço familiar; depois, um modelo narrativo em que o trabalho específico dos actores é sempre fundamental.
J.-P. RAPPENEAU
[Télérama]
E é um facto que Rappeneau, mesmo com uma filmografia relativamente escassa (em mais de meio século de carreira, esta é apenas a sua oitava longa-metragem), se pode definir, antes do mais, como um competente director de actores. Foi ele, por exemplo, que em Meu Irresistível Selvagem (1975) encenou o par Catherine Deneuve/Yves Montand num registo paródico, à beira do burlesco; foi também ele que criou as condições para uma das melhores composições de Gérard Depardieu, em Cyrano de Bergerac (1990).
Não admira que Que Famílias! se distinga, sobretudo, pela prestação dos seus actores. O destaque vai para Mathieu Amalric, interpretando um homem de negócios, sediado na China, que ao visitar a mãe, em Paris, fica chocado com uma decisão em grande parte induzida pelo irmão com quem, há muito tempo, mantém uma relação conflituosa: o palacete da família, em Ambray (cidade imaginária), está à venda, suscitando a cobiça de várias entidades locais...
No elenco surgem ainda, entre outros, Marine Vacth (musa de François Ozon, em Jovem e Bela) e Gilles Lellouche (que vimos, por exemplo, em A Rede do Crime, de Cédric Jimenez), sem esquecer os veteranos André Dussolier e Nicole Garcia. Num registo que vai do romanesco à caricatura social, eles asseguram o essencial deste tipo de cinema: uma visão ligeira das relações sociais em que o retrato “psicológico” constitui um valor fundamental.
Se pensarmos em alguns exemplos desta matriz narrativa na mais recente produção francesa — penso, por exemplo, em Mal de Pierres, um dos títulos do recente Festival de Cannes (curiosamente, realizado por Nicole Garcia) —, há que reconhecer que Rappeneau mantém as marcas de uma competência profissional que outros filmes mais ambiciosos nem sempre conseguem exibir. Seja como for, sente-se também o efeito de rotina de um estilo que parece já não conseguir lidar com as texturas sociais do presente, a não ser a partir de modelos mais ou menos académicos.
No contexto português, Que Famílias! ilustra também os paradoxos de um período (a chamada “temporada de Verão”) em que o mercado surge dominado pelas produções de Hollywood, abrindo espaços mais ou menos discretos para produções com estas características. Embora tal questão transcenda, obviamente, o filme de Rappeneau, o seu lançamento renova uma questão fulcra. A saber: quando prevalecem os modelos de promoção do cinema americano, como dar visibilidade (e força comercial) aos produtos de outras origens?