domingo, junho 12, 2016

Futebol contra "House of Cards"

Robin Wright e Kevin Spacey
HOUSE OF CARDS (ep. 13, 4ª temporada)
O dia a dia televisivo passou a ser dominado pelas imagens de futebol — este crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (5 Junho), com o título 'A nossa sociedade do futebol'.

As imagens com mais visibilidade numa determinada sociedade constituem um fundamental índice do seu desenvolvimento cultural. Não me estou a referir, entenda-se, ao “mercado cultural” e à circulação de obras a que se reconhece alguma dimensão artística. Falo de cultura no sentido mais visceral (e também, creio, mais essencial): A saber: a arquitectura dos valores que, melhor ou pior, definem o nosso viver colectivo.
Através do meio televisivo, decisivo na percepção (e funcionamento) da dinâmica social, o quotidiano passou a estar dominado por imagens do futebol. E não se trata apenas de reconhecer esse fenómeno quantitativo que promoveu os treinadores de Benfica, Sporting e Porto a personagens obrigatórias (?) de todos os noticiários televisivos (sem que a rádio, convenhamos, lhes fique atrás). Trata-se também de ter em conta a dimensão qualitativa de tudo isso, a ponto de os jogadores de futebol serem apresentados — em particular aos espectadores infantis e juvenis — como modelos compulsivos de pose, comportamento e objectivos de vida.
Neste estado de coisas, as imagens que realmente importam — no sentido em que nos desafiam a usar a inteligência para compreendermos o mundo à nossa volta — são quase sempre secundarizadas no caldeirão mediático (quando não liminarmente ignoradas). Por exemplo: numa sociedade que se quer tão disponível para a discussão das identidades sexuais, qual o impacto de um filme como Uma Nova Amiga, de François Ozon? Sejamos claros: as suas propostas não mereceram nem uma milésima parte da evidência noticiosa que é automaticamente conferida a qualquer “blockbuster” povoado de super-heróis digitais.
A conjuntura é tanto mais rotineira quanto já nem se reconhece o valor das imagens mais intensas geradas pela própria televisão. Vale a pena destacar uma delas, vista na série House of Cards (TV Séries), no derradeiro episódio da quarta temporada (a quinta está agendada para 2017). Na sequência de um processo viciado por muitas manobras de bastidores, o Presidente Frank Underwood enfrenta as ameaças terroristas através de uma declaração de guerra que lhe irá servir, perversamente, para combater os inimigos internos. No plano final, Frank e a sua mulher Claire (que concorre com ele para o lugar de Vice-Presidente) estão lado a lado e olham para câmara. Literalmente: Kevin Spacey e Robin Wright terminam o episódio numa pose que contraria as regras correntes da ficção (televisiva ou cinematográfica), contemplando o lugar do próprio espectador.
Escusado será dizer que esta é uma imagem de intensa perturbação, pelos temas políticos que nela ecoam (Frank é um Presidente democrata e tudo se passa em ano de eleições nos EUA) e também pela sua raridade no contexto televisivo. De facto, Frank e Claire não estão a ler as notícias. Estão, isso sim, a recordar-nos os tão menosprezados poderes da ficção.