quinta-feira, abril 07, 2016

O melodrama segundo Garrel (2/2)

Philippe Garrel + Renato Berta [Arte]
O cinema intimista de Philippe Garrel está de volta às salas portuguesas com À Sombra das Mulheres — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Março), com o título 'O melodrama reinventado por Philippe Garrel'.

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Apresentado na abertura oficial da Quinzena dos Realizadores (Cannes/2015), À Sombra das Mulheres relança um tema nuclear do universo de Garrel: a contraditória crueldade do amor. Que é como quem diz: a relação amorosa é vivida como pulsão que liberta as personagens, tanto quanto as empurra para as mais trágicas formas de prisão afectiva, muito para além de qualquer escolha consciente.
As singularidades emocionais do filme são tanto mais sugestivas quanto as peripécias se enredam com elementos de trabalho do próprio cinema. Assim, este é o retrato de Pierre (Stanislas Mehrar) e Manon (Clotide Courau), um casal que realiza filmes; durante a rodagem de um documentário, Pierre envolve-se com Elisabeth (Lena Paugam), mais tarde descobrindo que Manon tem uma relação com um outro homem (Mounir Margoum)...
São dados clássicos de uma estrutura melodramática, com as suas revelações e também os seus segredos: A ama B, B encontra C, etc. E, à sua maneira, Garrel é um criador de depurado classicismo. Com uma nuance que será importante sublinhar: em vez de uma mais ou menos angustiada reposição da ordem (familiar, social), os seus filmes desembocam numa perplexidade insólita, a meio caminho entre a tragédia e a ironia. Como quem pergunta: afinal, que tipo de ordem pode apaziguar as dores e os desejos vividos por estas personagens? Filmes como À Sombra das Mulheres são contos morais em que, em última instância, ninguém tem uma moral mais forte, ou mais legítima, que a do parceiro do lado.
Curiosamente, um dos elementos mais obsessivos (porventura também mais clássicos) da filmografia de Garrel é a continuada utilização das imagens a preto e branco. Será outra ligação simbólica com os tempos áureos da Nova Vaga? Sim, sem dúvida. São imagens que possuem uma duplicidade essencial: garantem um certo realismo, por assim dizer à flor da pele, ao mesmo tempo que instalam uma sensação ambígua de metódica abstracção. No caso de À Sombra das Mulheres, a direcção fotográfica pertence ao sempre notável Renato Berta, afinal outro elo de ligação com a herança plural da Nova Vaga — trabalhou, entre outros, com Jean-Luc Godard, Louis Malle e Alain Resnais, tendo sido também responsável pelas imagens de vários filmes de Manoel de Oliveira.