domingo, abril 10, 2016

Música para beber


A ideia do álbum como espaço conceptual ao serviço da música clássica não é, de todo, uma novidade. E só nos últimos anos vimos, por exemplo, o violinista Daniel Hope a dar corpo a uma série de ideias, cada qual acabando por moldar um disco no qual o protagonista não se limita a ser um intérprete (como o que apresenta um recital), mas também ele alguém com um pensamento temático ou estético sobre a música que tem em mãos, mesmo que não tenha ele composto uma única das notas que toca.

A pianista francesa Helène Grimaud, que tem sabido cruzar épocas e fontes diversas nos repertórios que apresenta (nos últimos anos por ela passaram em disco tanto peças de Pärt, ou Corrigliano como de Brahms ou Mozart), surge aqui como voz protagonista (ao piano) de uma seleção de composições que têm em comum a presença da água como fonte de inspiração. Mas o que dá a coesão a Water, álbum que edita pela Deutsche Grammophon, não é apenas essa bela seleção de temas (que ela tão bem interpreta). É, antes, a sua disseminação como partes de um todo que toma Water, uma composição ambiental electrónica de Nitin Sawhney, como corpo que une as partes, da soma nascendo o todo que é o disco.

Water é, assim, uma peça a várias vozes que encontra no tema e na capacidade de diálogo entre as várias peças, a carnalidade do corpo líquido que nasce ideia e se faz som. Helène Grimaud chama a si pequenas peças instrumentais como Wasserklavier de Berio, Jeux d’Eau de Ravel, Rain Tree Sketch II de Takemistu ou a Barcarolle Nº 5 de Fauré. E entre todas elas, assinalando episódios de transição que definem afinal o corpo maior do disco, os sete fragmentos de Water, de Nitin Sahwney, tecem os cenários nos quais a voz do piano ganha sentido.

Sawhney, músico, DJ e produtor, colaborador em tempos idos de Talvin Singh e autor em 1999 do álbum Beyond Skin que então assinalou um dos mais importantes centros de reflexão sobre novas possibilidades instrumentais para heranças musicais de geografia indiana, revela em Water sinais interessantes de novas demandas, chamando atenções para um autor que nos últimos anos tem trabalhado em frentes diversas talvez sob menos atenção internacional do que certamente mereceria. Quem sabe Water desperta novos interesses no seu sentido.

O disco nasceu em etapas e lugares diferentes. As partes de Helène Grimaud foram gravadas ao vivo em Nova Iorque em dezembro de 2014. As de Nitin Sawhney, por sua vez, envolvendo electrónicas, guitarra e programações, foram registadas num estúdio londrino no verão de 2015. O disco faz de ambas parte de uma realidade comum. Líquida, flui entre as referências de tempo e sons que cruza, lembrando uma vez mais como é no diálogo entre épocas, estéticas e sonoridades que a música mantém vibrante a pulsação que a faz coisa viva. Mesmo quando o compositor que a imaginou não está há muito entre nós. Isto sem esquecer o seu papel enquanto material que desperta a reflexão, neste caso transportando um discurso ambientalista, de procura por um sentido de equilíbrio há muito perdido, acreditando que as ideias, por aqui, possam também fluir no melhor caminho.