sexta-feira, abril 15, 2016

Berlim, depois do muro


"Berlim é pobre, mas sexy"... É com estas palavras que mergulhamos na capital alemã, cidade reinventada duas décadas passadas sobre a queda do muro como destino desejado para jovens e artistas que ali procuram, como diz Mathilde Ramadier, “melhor qualidade de vida, a demanda de uma certa lentidão desprovida do stress urbano, a conquista de um mercado de trabalho mais moderno, mais prometedor, mais criativo”... Assim entramos em Berlin 2.0, uma novela gráfica que nos coloca perante a promessa de sonho que Berlim parece hoje exercer sobre tantos mas que, sob ecos da experiência pessoal da própria autora, revela também o outro lado da visão de um modelo ultraliberal que, como deixa aqui em jeito de alerta, tem outras faces a considerar.

Com formação como artista gráfica, tendo também estudado filosofia e psicologia, a francesa Mathilde Ramadier junta-se aqui ao desenhador espanhol Alberto Madrigal (que vive na capital alemã) para nos dar em Berlim 2.0 o retrato de uma experiência vivencial pessoal mas que, afinal, transporta também em si um retrato do lugar e dos demais que o habitam. Tal como o fez a autora, também a protagonista é uma francesa (de um país ali tão perto como ela mesma o diz) que parte para Berlim em busca de uma vida diferente em tempo de terminar uma tese. Tem uma bolsa que lhe permite uma base de rendimentos, mas precisa de trabalho. E é nesse processo que, depois da descoberta dos amigos, dos parques, da vida de cafés e discotecas, das festas em casa em que os sapatos ficam à entrada (um bom hábito higiénico nos países do Norte, sublinhe-se), tudo muito cool, tudo muito livre, que descobre o reverso da medalha em horários intensos a preços que nem sequer conhecem uma noção de ordenado mínimo. Porque, diz ela, não existe. E é no confronto com as realidades entre start ups muito jovens e modernas, mas mal pagas, e galerias de arte onde por detrás da criatividade das obras expostas moram outras artes, que a protagonista tece um retrato feito de contrastes.

Fica claro que se trata, logo à partida, de um percurso pessoal. Mas quando o espaço de vida da protagonista se cruza com o ambiente que lhe serve de palco, acabamos a sentir que, no fundo é da cidade no presente, que, afinal Berlim 2.0 acaba por falar. Não há por isso aqui muitas memórias antigas, alusões históricas, explicações enraizadas no passado. Tudo ali começou de novo há pouco tempo. Renasceu. É 2.0... O desenho de Madrigal, que é discreto, moderno e tranquilo, tem por isso cautela em não fazer dos cenários um desfile de postalinhos clássicos de Berlim. Bastam os recortes muito característicos dos prédios e um ocasional olhar conjunto (onde a torre junto a Alexanderplatz se destaca), para dizer que ali estamos. Bom, talvez a alusão ao Porn Film Festival, à omnipresença da música eletrónica ou o bairro de Friedrichshain sejam os postalinhos “modernos” da Berlim de hoje. Mas o livro chama-se mesmo Berlim 2.0. Faz sentido que tenha a sua iconografia atual devidamente assim mitificada.

Há um epílogo de duas páginas no qual se explicam algumas das realidades sociais e económicas da vida berlinense no presente e pelo qual a autora parece querer reforçar a relação desta narrativa com a realidade, inscrevendo este livro num espaço que respira também assim uma alma documentarista.