segunda-feira, abril 04, 2016

A televisão vista de Bruxelas

REALITY (2012), de Matteo Garrone
Porque é que a visão "heróica" do jornalismo tende a contaminar os momentos mais terríveis da existência humana? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Abril), com o título 'Bruxelas em versão televisiva'.

Importa regressar aos modos televisivos de abordagem dos atentados terroristas de Bruxelas. E de Bruxelas porque, neste como noutros domínios do audiovisual, importa também não favorecer as generalizações irresponsáveis que se afunilam em categorias simplistas: os “atentados”, os “desastres naturais”, os “golos marcados fora da área”... tudo parece poder servir de pretexto para descrever o mundo em categorias estanques e imagens definitivas.
Ora, justamente, os “comentários” em torno dos atentados de Bruxelas promoveram de modo absolutamente delirante um novo estereótipo do espaço televisivo. A saber: a testemunha ocular.
Nada de totalmente novo, convenhamos. Conhecíamos já a variante “sociológica” que consiste em noticiar determinado assunto através “daquilo que pensam os portugueses”. Como? Promovendo um inquérito de imaculada abrangência científica: dois simpáticos velhotes sentados num banco do Rossio pronunciam-se, por exemplo, sobre as catástrofes do sistema bancário...
Desta vez, a matriz cognitiva construiu-se através daqueles que “estavam lá”. Na CNN, vi mesmo uma correspondente da Georgian Public Broadcasting (de nome Ketevan Kardava) ser entrevistada, a partir de sua casa, fornecendo um testemunho que se resumia à noção obscena de que a sua presença na zona dos atentados (tinha mesmo uma fotografia para apontar o local em que se encontrava) envolvia uma espécie de suplemento de verdade que, subitamente, reduzia todas as ocorrências a uma grosseira variação de uma proeza estilo “Rambo”: estava lá e, em nome do jornalismo, ainda apanhou alguns estilhaços...
A descrição tende, inevitavelmente, para o anedótico. O certo é que tais formas de encenação ilustram uma directriz dominante de muitas formas contemporâneas de informação (televisiva ou não), de uma maneira ou de outra ligadas a um princípio caricato de “personalização”.
No limite, os atentados de Bruxelas, a ameaça dos fundamentalismos religiosos ou as contradições internas da política europeia acabam por desembocar no mais gratuito pitoresco. Pode mesmo passar-se da visão dantesca do aeroporto de Bruxelas para a quietude de uma aldeia perdida no mapa, apenas porque uma das vítimas era familiar de alguém que recorda a sua infância feliz naquele lugar esquecido... A tragédia da Europa transfigura-se no simplismo bucólico de um cenário grosseiramente instrumentalizado em nome das “notícias”.
Prevalece, assim, um fascínio pueril pela presença em televisão que duplica, em tudo e por tudo, o efeito de “fama” fabricado pelos violência simbólica do Big Brother. Como se qualquer ser humano fosse um duplo do protagonista (Aniello Arena) do notável filme Reality (2012), de Matteo Garrone: a sua ânsia de participar constitui, afinal, a única prova que ele conhece da sua própria existência. Como se ser transformado em imagem fosse uma forma de destino.