Pode um álbum nascido sob evidente pulsão experimental ser uma peça acessível, capaz de cruzar barreiras de géneros, formas e sons, projetando-nos num domínio que é o oposto da ideia de terra de ninguém para, afinal, poder ser uma terra de todos? Não será fácil imaginar um destino de grande visibilidade mainstream para a música de Anna Meredith, até porque os consumos nesses patamares estão cada vez mais fechados a regras formulaicas que fazem parecer coisa surda tudo o que se afasta dos sabores do momento. Mas, tão capaz de entusiasmar um Royal Albert Hall em noite de Proms, como dotada de uma capacidade de sedução evidente para quem acompanha a linha da frente de acontecimentos nas vanguardas do pensamento eletrónico, esta jovem britânica, que foi já compositora residente da BBC Scottish Symphony Orchestra e desempenhou cargo semelhante com a Sinfonia Viva e, em 2012, cativou atenções com Handsfree, peça sem instrumentos interpretada pelos elementos da National Youth Orchestra, iniciou um trabalho de demanda discográfica em paralelo a este esforço na composição e pelo qual cruza todas estas sensibilidades por um gosto evidente pelas dinâmicas e sonoridades da música eletrónica.
Nos discos estreou-se em 2012 com Black Prince Fury, um primeiro EP no qual tomava as ferramentas eletrónicas como base de trabalho, procurando tanto pistas entre formas próximas dos espaços da música de dança como heranças possíveis dos minimalistas, revelando Nautilus, o tema de abertura, uma potente fanfarra para metais, um sentido de visão que dava desde logo sinais de que Anna Meredith trilhava o seu novo caminho no sentido certo. Um ano depois, o segundo EP, Jet Black Rider, juntava aos espaços já explorados a presença da sonoridade de instrumentos mais “convencionais”, colocando-os contudo num contexto diferente daquele que estamos habituados a encontrar quando os vemos no quadro de uma orquestra sinfónica. As eletrónicas voltavam a ditar a pulsação do corpo musical, experimentando formas mais próximas da canção pop, encerrando o alinhamento com ALR, uma inesperada e surpreendente versão de A Little Respect, dos Erasure.
Agora, três anos depois, o álbum de estreia, a que chamou Varmints, dá o seguro passo em frente face a estes dois primeiros ensaios sobre os fundamentos de uma linguagem que, sem ser de rutura, representa uma das mais interessantes propostas de diálogo entre os universos da música eletrónica e da música orquestral que têm surgido em cena nos últimos tempos. Há precedentes. Todd Levin, que nos anos 90 apresentou um álbum com alma de ovni no catálogo da Deutsche Grammophon, tinha já experimentado ensaiar espaços de comunicação entre estes mundos. A série Re-Composed (através sobretudo das contribuições de Moritz von Oswald ou Carl Craig) também já andou por estes caminhos. Mas o que Anna Meredith junta aqui é a sensibilidade da compositora que toma os instrumentos como ponto de partida para deles fazer nascer a busca de uma voz nova, integrada, comunicativa.
Nautilus, que regressa quatro anos depois, dá o mote e faz-nos entrar num alinhamento que, depois, lança a surpresa a cada faixa que se sucede, entre o ineditismo de algumas sugestões havendo contudo um cativante sentido de familiaridade. Como se, afinal, estas formas e sons fizessem já parte da nossa experiência. Só não tinham sido tão bem reunidos antes num corpo comum.
Do acesso de techno de R-Type, com flirt elétrico de pulsão quase metal que emerge pontualmente a meio do tema, às paisagens mais ambientais e cenicamente plácidas de Honeyed Words, passando pela experiência pop empolgante de Taken (que evoca sabores da música de um Philip Glass em finais dos anos 70 em diálogo com um corpo new wave),Varmints é, garantidamente, um dos discos mais surpreendentes, imaginativos e diferentes que vamos escutar este ano.