[cartaz francês] |
É uma circunstância feliz esta de a Festa do Cinema Italiano [começou no dia 30 em Lisboa, envolvendo cinema São Jorge, UCI El Corte Inglés e Cinemateca] abrir com dois títulos que, por assim dizer, dialogam à distância de mais de meio século: por um lado, O Conto dos Contos, de Matteo Garrone, espectáculo de exuberante fantasia que recupera os contos escritos por Giambattista Basile nos séculos XVI/XVII; por outro lado, o clássico Oito e Meio, de Federico Fellini, precisamente um autor que Garrone reconhece como um dos seus mestres (é mais uma reposição que o mercado português acolhe em cópia restaurada).
Estreado em Itália em Fevereiro de 1963 (chegou às salas portuguesas cerca de um ano mais tarde), Oito e Meio entrou na mitologia dos filmes como um dos mais elaborados, profundos e também sarcásticos retratos da própria criatividade cinematográfica. Guido Anselmi, a lendária personagem interpretada pelo magnífico Marcello Mastroianni, é um assumido “alter-ego” de Fellini: um cineasta que tenta superar uma situação de bloqueio para descobrir, afinal, que os seus fantasmas mais íntimos e, em particular, as suas enigmáticas relações com as mulheres (Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, etc.) definem a matéria essencial do seu próprio universo narrativo.
No seu ofegante vai-vém entre a crueza do quotidiano e o apelo de sonhos e pesadelos, Guido definiu um padrão de personagem que, com mais ou menos talento, muitos imitaram. Para nos ficarmos por um dos exemplos mais brilhantes, porventura também menos conhecidos, lembremos que Stardust Memories/Recordações (1980), de Woody Allen, se apresenta como uma pessoalíssima variação sobre as matrizes de Oito e Meio (a começar pela enigmática pulsão poética das suas imagens a preto e branco).
Fellini contemplava-se, assim, no seu próprio espelho, afinal percorrendo as vias ambíguas de um narcisismo sempre no limite do confessionalismo mais amargo. Em todo o caso, importa lembrar que a sua atitude não pode ser desligada de todo um contexto (cinematográfico, cultural, social) em que a noção de autor, precisamente, estava a ser revista e revalorizada.
Um recorde de 4 Oscars
1963 é um ano especialmente importante em tal dinâmica, aliás marcada pela afirmação global dos chamado “cinema novo”, fenómeno de revisão crítica dos clássicos e invenção de linguagens de que a Nova Vaga francesa foi o modelo fundamental. Em França, justamente, Jean-Luc Godard assinava O Desprezo, outro filme que encenava os bastidores do trabalho cinematográfico (aliás, rodado em Itália, na ilha de Capri e nos estúdios da Cinecittà, em Roma). Em Inglaterra, Joseph Losey dirigia O Criado, escrito por Harold Pinter, visão especialmente arrojada do sistema tradicional de classes sociais. Enfim, em Portugal, Manoel de Oliveira regressava à longa-metragem com Acto da Primavera, título emblemático das novas formas de relação entre documentário e ficção.
Para Fellini, como para vários outros autores italianos — Michelangelo Antonioni, por exemplo, preparava o revolucionário Deserto Vermelho, que seria lançado em 1964 —, tratava-se de superar, em definitivo, as formas herdadas do neo-realismo e, em particular, a sua lógica redentora e metafísica. Afinal de contas, de uma maneira ou de outra, quase todos os grandes cineastas europeus enfrentavam o “liberalismo” equívoco da sociedade de consumo e a sua reconfiguração das relações humanas. Nesta perspectiva, sendo um objecto na primeira pessoa, Oito e Meio era também uma renovada interrogação das ilusões sociais já expostas em A Doce Vida (1960). Para acentuar a dimensão pessoal do empreendimento, Fellini escolheu um título de básico simbolismo: era o seu “oitavo filme e meio”, uma vez que começara com “meio filme”, Luce del Varietà (1950), co-assinado com Alberto Lattuada.
Para a história, foi também um título de consolidação do nome de Fellini como o mais internacional da produção cinematográfica italiana da época. Assim, Oito e Meio foi a sua terceira realização a arrebatar o Oscar de melhor filme estrangeiro, depois de A Estrada (1956) e Noites de Cabíria (1957). Fellini é mesmo o cineasta que assinou mais títulos (quatro) consagrados com essa estatueta dourada: voltou a ganhar com Amarcord (1974). A Itália continua a ser, aliás, a cinematografia mais premiada pela Academia de Hollywood: 14 das suas produções já ganharam o Óscar de melhor filme estrangeiro.