A BELA IMPERTINENTE (1991) |
A obra de Jacques Rivette convoca-nos para contínuas e fascinantes releituras — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (30 Janeiro), com o título 'O cinema morreu, mas o teatro irá salvar-nos'.
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No Twitter, a Cinemateca Francesa recordou uma frase emblemática do cineasta: “Gosto que um filme seja uma aventura para aqueles que o fazem e, depois, para aqueles que o vêem.” Essa lógica de risco gerou especiais relações com os actores, desafiados a ignorar as fronteiras habituais de construção de uma personagem, assumindo-se “apenas” como seres humanos transfigurados e enriquecidos pelo artifício da representação. Em tempos de pessimismo cinematográfico (a “morte do cinema” é mesmo um tema simbólico herdado da Nova Vaga), Rivette encarou o trabalho teatral como uma cristalina salvação.
Bulle Ogier terá sido a sua musa mais fiel, desde O Amor Louco (1969) a Não Toquem no Machado (2007), passando por títulos como Céline et Julie Vont en Bateau (1974), Le Pont du Nord (1981), em cujo argumento participaram Ogier e a filha, Pascale Ogier, ou O Bando das Quatro (1989), filme em que Inês de Medeiros também integrava o elenco.
Uma das marcas mais insólitas do seu cinema foi a exploração de longuíssimas durações. Por exemplo, A Bela Impertinente (1991), centrado nas relações entre um pintor (Michel Piccoli) e o seu modelo (Emmanuelle Béart), dura quatro horas — foi o único filme que valeu a Rivette uma distinção no Festival de Cannes (Grande Prémio), no ano em que a Palma de Ouro foi para Barton Fink, dos irmãos Coen. Em qualquer caso, o exemplo mais extremo é Out 1: Noli me Tangere (1971), espantosa deambulação pelas ruínas geracionais e simbólicas de Maio 68 cuja duração é de 12 horas e 30 minutos — foi visto entre nós na Fundação Gulbenkian, programado por João Bénard da Costa.
Por vezes, interessou-se por aquilo a que, na gíria, se dá o nome de “reconstituições” históricas. Assim, assinou Hurlevent (1985), inspirado nos primeiros capítulos de O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë, transferindo a acção para a década de 1930, em França, e o épico em duas partes Joana d’Arc, a Donzela (1994), com Sandrine Bonnaire. Mais do que a memória dos compêndios, Rivette procurava as experiências limite de personagens que, destacando-se das normas do seu tempo, corporizam uma sensibilidade tão delicada quanto selvagem que, no limite, se confunde com o poder encantatório do próprio cinema.
Num célebre artigo sobre Kenji Mizoguchi (Cahiers du Cinéma, nº 81, Março 1958), definiu a arte do mestre japonês a partir do trabalho da câmara, “colocada sempre no ponto exacto em que o mais pequeno movimento altera todas as linhas do espaço, revelando a face oculta do mundo e dos seus deuses.” O legado de Rivette envolve o mesmo rigor e a mesma energia libertadora.