sexta-feira, fevereiro 12, 2016

Meryl Streep: "Somos todos africanos"

MERYL STREEP
Foto: Gerhard Kassner, Berlinale
10 Fev. 2016
Em Berlim, onde está a presidir ao júri oficial da 66ª edição do festival de cinema da cidade, Meryl Streep foi confrontada com a polémica que tem envolvido a presença/ausência de afro-americanos nas nomeações para as principais categorias dos Oscars deste ano. Numa declaração basicamente afectiva, a actriz norte-americana deixou uma nota de sensatez — condensada na expressão "somos todos africanos" [video] —, acima de tudo recusando qualquer sistema "sindical" de cotas para enfrentar tão complexa situação.


De acordo com as notícias [The Guardian], não faltaram as reacções "sociais" de chacota mais ou menos insultuosa. Aliás, há quem assuma um discurso de clara ameaça, brandindo a gritaria "social" como um instrumento de validação democrática: Travon Free atreve-se mesmo a escrever que "hoje parece-me que Meryl Streep nunca teve tanta sorte por não estar no Twitter." [DN].
Mantém-se, por isso, o estado de calamidade ideológica: qualquer pessoa que tente evitar o maniqueísmo estatístico que tem presidido à formulação do problema corre o risco de ser rotulada de intolerante, quando não de racismo — na prática, isto significa também uma pueril simplificação da pluralidade da própria história de Hollywood.

>>> Os dois textos que se seguem foram publicados no Diário de Notícias (17 e 24 Janeiro, respectivamente).

Qual a cor da pele de Spike Lee?

A abordagem de personagens negras no cinema americano envolve uma história demasiado complexa e contrastada para que a reduzamos a qualquer esquematismo. Por isso mesmo, sou dos espectadores (de novo) surpreendido pela facilidade com que, por vezes, do interior da própria comunidade de Hollywood, surgem pontos de vista tão simplistas sobre essa história.
Chris Rock
OSCARS 2016
Voltou a acontecer a pretexto das recentes nomeações para os Oscars, os prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (a atribuir no dia 28 de Fevereiro). Cheryl Boone Isaacs, cidadã afro-americana, presidente da Academia, declarou-se “desapontada” pelo facto de alguns títulos marcados por temáticas afro-americanas (Straight Outta Compton, Concussion e Beasts of No Nation) não concorrerem para os prémios principais ou estarem mesmo ausentes das nomeações. Aliás, o seu ponto de vista tem ecoado noutras intervenções de analistas americanos.
Repete-se, assim, algo que já tínhamos observado, há cerca de um ano, em torno do filme Selma, evocando a campanha liderada por Martin Luther King na defesa da igualdade de direitos de voto para todos os cidadãos americanos. A sua presença discreta nas nomeações para os Oscars (apesar de ser um dos candidatos a melhor filme do ano), levou mesmo o actor principal, David Oyelowo, a considerar-se “incomodado” pela sua ausência entre os nomeados para melhor actor — não por razões pessoais, entenda-se, mas pelo facto de Luther King ser “um dos mais importantes seres humanos” na história da América.
Spike Lee
FOTO: USA Today
Em boa verdade, podemos admitir que a maioria dos membros da Academia terá visto Selma como um vulgar telefilme “histórico”, cinematograficamente débil (é esse, em qualquer caso, o meu ponto de vista). Nada disso envolve qualquer recalcamento da sua temática, muito menos qualquer desrespeito pela figura imensa de Luther King. Trata-se apenas de não favorecer a noção segundo a qual os Oscars podem ser avaliados através de uma contabilidade pueril, literalmente a preto e branco.
A dúvida que importa relançar é esta: qual o ganho (político, antes do mais) que pode resultar da redução da presença dos afro-americanos nos filmes de Hollywood a uma mera questão de números? Tal redução não conduzirá, em última instância, a uma simplificação grosseira do património americano do cinema?
Convém lembrar, a propósito, que esta temporada de Oscars começou com os chamados Governor Awards (atribuídos a 14 de Novembro), com Spike Lee, autor de títulos marcantes como Não Dês Bronca (1989), Verão Escaldante (1999) ou A Última Hora (2002), a receber um prémio honorário. Dirão os mais cínicos que essa foi uma maneira de a Academia “compensar” o facto de nunca lhe ter sido atribuído um Oscar... Talvez. Em todo o caso, será preciso demonstrar que foi também a cor da pele que fez com que o mesmo tivesse acontecido, entre outros, a um tal Alfred Hitchcock.

Adivinha quem vem (outra vez) jantar?

Ao comentar aqui, a semana passada, a polémica em torno da “falta de representatividade” dos afro-americanos nas nomeações para os Oscars — questão suscitada, inicialmente, por Spike Lee e Jada Pinkett Smith, declarando que não estarão presentes na cerimónia de 28 de Fevereiro [Variety] —, confesso que não pensei que o assunto pudesse evoluir de forma tão dramática.
Cheryl Boone Isaacs
OSCARS
Primeiro, Spike Lee achou por bem esclarecer que, embora não assistindo à cerimónia, não apelou ao respectivo “boicote” [The Guardian]... Depois, Will Smith veio dizer que está solidário com a sua mulher, Jada Pinkett Smith [The Frisky]. Entretanto, em entrevista à rádio francesa Europe 1, Charlotte Rampling lembrou que “nunca será possível ter a certeza, mas talvez os actores não merecessem integrar a lista final”, chamando a atenção para a possibilidade de se estar a favorecer um “racismo contra os brancos”.
Rampling lembrou também, com alguma ironia, que se corre o risco de estabelecer padrões para quem é “demasiado negro”, “demasiado branco” ou “não suficientemente bonito”... Em qualquer caso, deixando a pergunta mais concisa e delicada: “Temos de deduzir de tudo isto que tem de haver montes de minorias em todo o lado?”.
O assunto adquiriu uma dimensão inequivocamente oficial através da tomada de posição de Cheryl Boone Isaacs, presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (a entidade que atribui os Oscars): vão ser tomadas medidas para que, até 2020, as estruturas da Academia integrem 48% de mulheres e, pelo menos, 14% de diversas minorias. A primeira medida será a nomeação directa, pela presidente, de três membros para os órgãos directivos (“board of governors”) da Academia.
Estaremos perante uma tempestade num copo de água? Não creio. Porque o que está em jogo é a possibilidade de se vir a encarar a representação cinematográfica de brancos e negros como uma mera contabilidade, gerida por valores estupidamente burocráticos. Impressionada com a agitação, Charlotte Rampling voltou a expressar-se publicamente, no programa “Sunday Morning”, da CBS, esclarecendo que “apenas quis dizer que, num mundo ideal, todas as performances teriam idênticas oportunidades de avaliação”.
Assim se multiplica um pecado corrente do espaço mediático global. A saber: a simplificação de um problema infinitamente complexo e contrastado — a representação dos negros na história do cinema americano — através das “boas intenções” do presente. Além do mais, a história plural de Hollywood merece outro respeito.
Quando evocamos, por exemplo, um filme como Adivinha Quem Vem Jantar? (1967), de Stanley Kramer, haverá quem o olhe, agora, como um objecto algo ingénuo e voluntarista na representação de brancos e negros... Talvez. Mas será que isso apaga a importância simbólica do seu impacto há quase meio século? E será que, um dia destes, alguém virá protestar contra a habitual presença minoritária dos brancos nos Grammy?