Numa nova adaptação do romance de Octave Mirbeau, Diário de uma Criada de Quarto, Benoît Jacquot reencontra as formas e as razões de um desencantado romantismo histórico este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Janeiro), com o título 'O cinema no coração da hipocrisia'.
Curiosa sensação de fora de moda no território cinematográfico: na quadra natalícia, este ano dominada pelo impacto de Star Wars (enquadrado pela “tradicional” avalanche de marketing que promove automóveis, telemóveis e chocolates em nome da harmonia familiar e dos mais puros sentimentos cristãos), surgiu nas salas uma nova versão de Diário de uma Criada de Quarto.
Acontecimento discreto. Não está na moda, de facto, este retorno a fontes literárias com mais de um século (o romance de Octave Mirbeau surgiu em 1900). Sobretudo não é comum que se façam adaptações “históricas” que se interessem menos pela ostentação dos adereços da “reconstituição” (cenários, guarda-roupa, etc.) e mais, muitíssimo mais, pelas nuances de uma estrutura narrativa que continua a manter um invulgar poder de sedução e perturbação.
Benoît Jacquot, realizador desta nova versão, tem na sua filmografia algumas provas eloquentes desse gosto por um cinema capaz de deambular pelas paisagens do passado, fazendo o levantamento de emoções e perplexidades morais que continuam a tocar-nos de forma enigmática — lembro, por exemplo, As Asas da Pomba (1981) e Adolphe (2002), inspirados em Henry James e Benjamin Constant, respectivamente.
Benoît Jacquot |
O mínimo que se pode dizer desta nova versão da história de uma criada cuja tenacidade e arrojo desafiam os poderes masculinos instituídos é que Jacquot evita qualquer aproximação, nem que seja por simples homenagem cinéfila, das versões assinadas por Jean Renoir (1946), mais burlesca, e Luis Buñuel (1964), mais onírica. Tal como interpretada pela brilhante Léa Seydoux, a Célestine de Diário de uma Criada de Quarto define-se como um misto de submissão e provocação, enredada numa teia de afectos em que, porventura contra toda a lógica, a possibilidade do amor não se desvaneceu.
Somos envolvidos em tudo isso (ou por tudo isso) através de uma encenação capaz de combinar o mais básico valor informativo das imagens com a sua transfiguração em elementos de um realismo paradoxal, capaz de desafiar as ilusões de qualquer naturalismo descritivo (leia-se: televisivo). E tanto mais quanto Jacquot, fiel à dinâmica da escrita de Mirbeau, explora uma narrativa plena de contrastes e cortes bruscos em que vão emergindo os sinais de um virulento anti-semitismo (estava-se em finais do séc. XIX, quando eclode o Caso Dreyfus).
Jacquot relança, assim, os valores de um cinema visceralmente romanesco, capaz de celebrar a infinita complexidade do factor humano face a todas as perversidades da hipocrisia social (diz a narradora de Mirbeau: “Por mais infames que sejam os canalhas, nunca o são tanto como as pessoas honestas”). É um cinema que sustenta a ideia de que o prazer do espectador passa pela contestação dos seus hábitos de visão e interpretação. Coisa ingrata, claro, sobretudo em tempos obrigatoriamente festivos.