Nome fulcral da Nova Vaga francesa, mestre absoluto do cinema moderno, Jacques Rivette faleceu a 29 de Janeiro — contava 87 anos.
Se há cineastas que desafiam, de uma só vez, os modelos convencionais do cinema e os modos do seu consumo, Rivette foi, por certo, nesse domínio, um dos mais puros e também mais radicais. Alguns espectadores portugueses recordar-se-ão, provavelmente, da passagem de Out 1: Noli Me Tangere (1971), no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian (quando a respectiva programação estava a cargo de João Bénard da Costa): na sua duração integral — 749 minutos, isto é, 12h 29m —, o filme estava para além de qualquer duração ou métrica. Porquê? Porque, em boa verdade, inventariando os impasses e angústias herdados de Maio 68, nele se consumava uma ideia de cinema que, no limite, coincidia com uma ideia de vida.
Não admira, por isso, que Rivette tenha sido um criador permanentemente seduzido pelo teatro, ou melhor, pela teatralidade — incluindo a que marca o circo ambulante de Jane Birkin e Sergio Castellitto que descobrimos no seu filme final, 36 Vistas do Monte Saint-Loup (2009). Não se tratava de fugir à vida para saborear as delícias do artifício, mas de observar como a dicotomia tradicional entre o "vivido" e o "representado" condensa uma pobre ideia sobre a riqueza e complexidade dos destinos humanos.
O seu filme A Religiosa (1966), baseado em Diderot, protagonizou uma polémica histórica, sobre a liberdade de expressão na sociedade francesa. Em qualquer caso, Rivette foi persistindo como uma personagem discreta, por assim dizer, um guardião de um saber ancestral humildemente expresso em obras luminosas como L'Amour Fou (1969), revendo os bastidores do teatro como filtro mágico dos destinos humanos, A Bela Impertinente (1991), expondo o espaço de confronto, material e sensual, entre um pintor e o seu modelo, ou Sabe-se Lá (2001), reencontrando, com infinita elegância, o sabor primitivo da comédia burlesca.
Podemos, talvez, resumir o seu génio aplicando-lhe as palavras com que ele próprio condensou a arte de Howard Hawks (num texto intitulado, justamente, 'O génio de Howard Hawks', publicado no nº 23 dos Cahiers du Cinéma, de Maio de 1953): "É verdade que os extremos nos fascinam, como nos fascina tudo o que é arriscado e excessivo, e que reconhecemos grandeza na falta de moderação — daí resulta que nos sintamos intrigados pelo choque dos extremos, uma vez que nele se reúne a precisão intelectual das abstracções com o elemento mágico dos grandes impulsos terrenos, ligando, numa afirmação de vida, as tempestades às equações. A beleza de um filme de Hawks provém deste tipo de afirmação, convicta e serena, sem remorsos e com energia. É uma beleza que demonstra a existência pela respiração e o movimento pela caminhada. Que aquilo que é, é."
>>> Trailer de uma reposição americana de Out 1: Noli Me Tangere.
Se há cineastas que desafiam, de uma só vez, os modelos convencionais do cinema e os modos do seu consumo, Rivette foi, por certo, nesse domínio, um dos mais puros e também mais radicais. Alguns espectadores portugueses recordar-se-ão, provavelmente, da passagem de Out 1: Noli Me Tangere (1971), no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian (quando a respectiva programação estava a cargo de João Bénard da Costa): na sua duração integral — 749 minutos, isto é, 12h 29m —, o filme estava para além de qualquer duração ou métrica. Porquê? Porque, em boa verdade, inventariando os impasses e angústias herdados de Maio 68, nele se consumava uma ideia de cinema que, no limite, coincidia com uma ideia de vida.
Não admira, por isso, que Rivette tenha sido um criador permanentemente seduzido pelo teatro, ou melhor, pela teatralidade — incluindo a que marca o circo ambulante de Jane Birkin e Sergio Castellitto que descobrimos no seu filme final, 36 Vistas do Monte Saint-Loup (2009). Não se tratava de fugir à vida para saborear as delícias do artifício, mas de observar como a dicotomia tradicional entre o "vivido" e o "representado" condensa uma pobre ideia sobre a riqueza e complexidade dos destinos humanos.
O seu filme A Religiosa (1966), baseado em Diderot, protagonizou uma polémica histórica, sobre a liberdade de expressão na sociedade francesa. Em qualquer caso, Rivette foi persistindo como uma personagem discreta, por assim dizer, um guardião de um saber ancestral humildemente expresso em obras luminosas como L'Amour Fou (1969), revendo os bastidores do teatro como filtro mágico dos destinos humanos, A Bela Impertinente (1991), expondo o espaço de confronto, material e sensual, entre um pintor e o seu modelo, ou Sabe-se Lá (2001), reencontrando, com infinita elegância, o sabor primitivo da comédia burlesca.
Podemos, talvez, resumir o seu génio aplicando-lhe as palavras com que ele próprio condensou a arte de Howard Hawks (num texto intitulado, justamente, 'O génio de Howard Hawks', publicado no nº 23 dos Cahiers du Cinéma, de Maio de 1953): "É verdade que os extremos nos fascinam, como nos fascina tudo o que é arriscado e excessivo, e que reconhecemos grandeza na falta de moderação — daí resulta que nos sintamos intrigados pelo choque dos extremos, uma vez que nele se reúne a precisão intelectual das abstracções com o elemento mágico dos grandes impulsos terrenos, ligando, numa afirmação de vida, as tempestades às equações. A beleza de um filme de Hawks provém deste tipo de afirmação, convicta e serena, sem remorsos e com energia. É uma beleza que demonstra a existência pela respiração e o movimento pela caminhada. Que aquilo que é, é."
>>> Trailer de uma reposição americana de Out 1: Noli Me Tangere.
>>> Obituário de Jacques Rivette: Le Monde + The Guardian + The New York Times.