segunda-feira, janeiro 11, 2016

David Bowie (1947-2016)


Pouco depois de fazer chegar ao mundo Blackstar, um dos seus melhores discos, criticamente aplaudido em várias frentes, David Bowie morreu em sua casa, acompanhado pelos familiares, ao cabo de uma batalha de 18 meses contra um cancro. Tinha 69 anos.

Estava de regresso aos discos, e sobretudo o recente teledisco de Lazarus revelava um corpo envelhecido e extremamente magro. Mas como a magreza em si não era novidade, ninguém suspeitou da carga que aquelas imagens de um homem deitado numa cama de hospital e de uma outra figura espectral, que no fim de fecha dentro de um armário e desaparece, poderiam ter mais leituras que as que esteticamente poderíamos retirar daquele momento.

Era sabida a condição clínica em que fora deixado após súbita interrupção da 'Reality Tour' (a dias de uma passagem pelo Porto). Foi submetido a uma angioplastia de urgência e, durante dez anos, dele não ouvimos nada de novo senão pontuais colaborações com os TV on the Radio, Kashmir, Scarlet Johansson, Arcade Fire ou David Gilmour, estas duas últimas ao vivo. Até que na manhã de 8 de janeiro de 2013 as redes sociais revelavam Where Are We Now?, uma nova canção que anunciava um álbum novo que ele gravara em segredo, durante dois anos, num estúdio em Manhattan, sem que ninguém desse por isso.


Três anos depois de The Next Day, esse dia seguinte em que ele nos mostrou como o momento em que o silêncio se calou em 2013 podia ser coisa de fulgor eléctrico, acabara de apresentar agora Blackstar, um álbum arrojado, mais experimental, um dos mais desafiantes e melhores de toda a sua obra, revelando sinais de diálogo com o jazz (mas à sua maneira). Poderia ser o ponto de partida para novas descobertas. Só não imaginávamos que fosse a sua carta de despedida.

Os obituários em piloto-automático vão falar do "camaleão", o mais fácil dos adjetivos para descrever a mais complexa e fascinante das figuras que a cultura pop/rock já conheceu. Mas David Bowie era bem mais do que alguém que "mudava". As cha-cha-changes como ele tão bem cantou em tempos.

Era um compositor raro, com uma capacidade em observar e assimilar, incapaz de se satisfazer no ato de seguir programas e ideias já feitas, o que o não impediu de, quando assim o entendeu, gravar versões, fazer discos claramente rock'n'roll ou até mesmo ser narrador para uma interpretação de Pedro e O Lobo.

Começou a sua carreira no mesmo ano em que os Bealtes lançavam Love Me Do. É verdade! Foi em 1962, como um dos elementos dos Kon-Rads, mostrando as fotos da banda um rapazito com um saxofone nas mãos. Era o seu instrumento. Aos discos chegou em 1964, com Liza Jane, o seu primeiro single. Mas só dois anos depois, e já com outros dois entretanto lançados, Davie Jones cedeu o nome àquele pelo qual ficaria conhecido. David Bowie nascia ali.

O primeiro álbum surge em 1967. Dois anos anos antes de Space Oddity (1969), que lhe deu finalmente um primeiro êxito, mostrava nesse álbum de estreia a que chamava simplesmente David Bowie um conjunto de canções com alma alienígena face ao que eram os caminhos pop/rock à sua volta. E depois dos singles em regime mod com que registara a sua entrada em cena, era com este disco, sobretudo cheio de heranças do teatro musical, que dizia que não era apenas mais um. Era ele.

Essa demanda pela identidade ganha sobretudo fôlego no início da década de 70 quando, depois do flirt proto-metal de The Man Who Sold the World (1971), e entre Hunky Dory (1971) e The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars (1972), descobre numa soma de elementos exteriores à cultura pop/rock (do teatro kabuki à exploração de questões de género e sexualidade), a chave para criar a primeira das suas grandes personagens. E, com ela, nesse disco de 1972, importante banda sonora, com iconografa a rigor, para o emergente glam rock.

Depois foram as visões orwellianas em Diamond Dogs (1974), as primeiras experiências com a soul e o funk em Young Americans (1975), a visão de outras possibilidades (escutando as electrónicas) em Station to Station (1976) e, entre Low (1977), Heroes (1977) e Lodger (1979), a assimilação de novas formas e sons, projectando ali o que seria o mapa pop que o mundo depois seguiria. Nos oitentas encontrou em Scary Monsters (1980) uma súmula eléctrica das conclusões de finais dos setentas e, com Nile Rodgers, teve em Let's Dance (1983) um caso de sucesso planetário como nunca conhecera. Tonight (1984) e Never Let Me Down (1987) foram difícil assimilação desse impacte, com ponto de fuga logo depois via Tin Machine. Voltou a gravar em nome próprio depois de Black Tie White Noise (onde encontrou novas abordagens a uma recorrente relação com a música negra) e da banda sonora de The Buddha of Suburbia, ambos em 1993. Entre 1.Oustide (1995) e Earthling (1997), insistiu na descoberta de novos mundos para a sua música como não fazia desde os anos 70, aqui em claro flirt com as novas possibilidades rítmicas na era do drum'n'bass. E depois entrou em estado "clássico", com hours... (1999), Heathen (2001) e Reality (2003), a permitir reflexões sobre algum do discurso que antes tinha dito.

Era um ator de raro talento, formado a observar teatro e cinema, ele mesmo tendo deixado um legado com momentos maiores ao lado de realizadores como Nagisa Oshima (em Merry Christmas Mr Lawrence) ou Tony Scott (The Hunger) ou até no palco, onde vestiu a pele do Homem Elefante sem qualquer elemento de caracterização, deixando a criação da deformidade física da personagem ao poder sugestivo da interpretação.