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O Museu Chaplin será uma realidade em 2016, relançando para as novas gerações as memórias do homem que criou o mais célebre vagabundo da história da humanidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Dezembro), com o título 'A actualidade do legado de Charlie Chaplin'.
O ano de 2016 vai trazer, por certo, um renovado interesse pela figura lendária de Charles Spencer Chaplin, ou apenas Charlie Chaplin, como ele assinava os seus filmes — ou ainda: Charlot. Assim, na Primavera, o Museu Chaplin será, finalmente, uma realidade. Anunciado como um empreendimento que cruzará as memórias de uma obra universal com as componentes da mais moderna tecnologia de preservação, divulgação e estudo das matérias cinematográficas, o museu resulta da adaptação da propriedade de Manoir de Ban, na Suíça, próximo do Lago Léman, onde Chaplin viveu os últimos 25 anos da sua existência [video: Euronews].
Dir-se-ia que a sua figura lendária atrai os números redondos das efemérides. Lembremos que o homem que criou o mais célebre vagabundo da história da humanidade, nos deixou numa data simbólica, entre todas: faleceu no dia de Natal de 1977, contava 88 anos (nasceu a 16 de Abril de 1889, em Londres). 2015 foi o ano em que se assinalou a passagem de um século sobre a produção de The Tramp (O Vagabundo), precisamente a curta-metragem que consolidou essa personagem que, através das suas aventuras e desventuras, se inscreveu no imaginário colectivo como a encarnação de uma lógica de sobrevivência sempre enredada com as grandezas e misérias da condição humana.
O ano que está a chegar envolve uma especialíssima efeméride: passam 80 anos sobre a estreia (em Nova Iorque, a 5 de Fevereiro de 1936) de Tempos Modernos, por certo a longa-metragem de Chaplin cuja simbologia, tanto ética como política, há muito transcendeu qualquer barreira histórica ou ideológica.
Fábula sobre a desumanização ligada a muitas formas de desenvolvimento industrial, Tempos Modernos representa o encerramento daquilo que poderíamos designar como o “ciclo clássico” do seu criador. Desde logo, porque se trata do derradeiro filme em que surge a personagem do vagabundo, identificado no genérico como “trabalhador fabril”. Charlot é uma figura anónima no interior de uma gigantesca cadeia de produção, vivendo um dia a dia de horários austeros e rotinas severas que, em última instância, foi formatando os seus gestos — a sequência em que tenta manter o ritmo imposto pelas máquinas, repetindo movimentos que transformaram o seu corpo num bizarro autómato, consolidou-se como metáfora deliciosamente burlesca dos excessos da industrialização.
O projecto de Tempos Modernos surgiu durante uma digressão mundial de 18 meses (1931-32), tendo como objectivo principal a promoção de Luzes da Cidade, cuja estreia americana ocorrera nos primeiros dias de 1931. O conhecimento da crise económica na Europa, contaminada pelos sinais de ascensão das forças nacionalistas, levou Chaplin a estudar com afinco as convulsões da economia, defendendo publicamente a sua visão de uma sociedade utópica em que a liberdade humana nunca seria condicionada pelo progresso tecnológico. Numa entrevista dada ainda em 1931, condensou tal visão, afirmando: “O desemprego é a questão vital. A maquinaria deve beneficiar a humanidade, não gerar uma tragédia em que os seres humanos não têm trabalho.”
Curiosamente, Tempos Modernos ficaria também como derradeira expressão da resistência estética de Chaplin à mais radical evolução técnica do próprio cinema: o advento do som que, convém lembrar, se impusera no mercado quase uma década antes (O Cantor de Jazz, com Al Jolson, surgira em 1927). Sem ser exactamente um filme mudo, Tempos Modernos distingue-se por uma banda sonora em que as vozes escasseiam e quase tudo se exprime através de ruídos e música. Nele encontramos Smile, uma das mais célebres canções compostas por Chaplin, ao longo das décadas recriada por nomes como Nat King Cole, Tony Bennett [video] ou Barbra Streisand — Robert Downey Jr. interpreta-a no filme biográfico Chaplin (1992), realizado por Richard Attenborough.
Ecoando também o gosto de Chaplin pelo cinema como um evento a que, no limite, basta o som da música, a divulgação da sua obra para os espectadores do séc. XXI está a passar por muitos “filmes-concerto”. Consultando o seu site oficial, podemos verificar que, da Suíça a Hong Kong, passando por Espanha, Alemanha, EUA, etc., há cerca de quatro dezenas de concertos agendados para o primeiro semestre de 2016 — A Quimera do Ouro (1925), Luzes da Cidade e Tempos Modernos são os filmes mais frequentemente projectados em tais espectáculos.
Na sequência da reposição de vários títulos de Chaplin em magníficas cópias restauradas, o ano que agora termina foi também particularmente rico no espaço específico dos livros. A edição mais surpreendente terá sido Charlie Chaplin – L’Album Keystone: L’Invention de Charlot (Xavier Barral, Paris), uma memória iconográfica dos primeiríssimos títulos rodados por Chaplin, para os estúdios Keystone, ao longo do ano de 1914. Os fotogramas desses pequenos filmes foram recolhidos e preservados, durante a década de 40, por H. D. Waley, na altura um dos directores do British Film Institute. Entretanto, na sua série de álbuns gigantes dedicados a grandes referências cinematográficas, a editora Taschen publicou The Charlie Chaplin Archives [capa], com coordenação de Paul Duncan, integrando documentos cedidos pelos herdeiros de Chaplin, compilados e tratados pela Cinemateca de Bolonha.
Em Luzes da Ribalta (1952), respondendo às angústias da bailarina Terry (Claire Bloom), o envelhecido palhaço Calvero (Chaplin), dizia-lhe: “Há uma coisa tão inevitável como a morte — é a vida” [video, com legendas em espanhol]. Tendo em conta que esse filme possui o fôlego de um genuíno testamento artístico, podemos condensar a herança do homem que inventou Charlot nesse paradoxo: a frieza do destino não exclui a energia da vida. Ou ainda: o riso e as lágrimas são apenas duas faces da mesma moeda.