terça-feira, dezembro 08, 2015

Irène Jacob: memórias de Kieslowski

VERMELHO (1994)
Irène Jacob é uma das figuras emblemáticas do universo cinematográfico do polaco Krzysztof Kieslowski — uma troca de mails com a actriz serviu de base a um texto publicado no Diário de Notícias (5 Dezembro).

Como é que a herança dos filmes de Krzystzof Kieslowski (1941-1996) persiste na memória de Irène Jacob? Ou ainda, em termos práticos: como entrevistar a actriz através das vantagens e limitações do correio electrónico?
Embora correndo o risco de ser acusado de patética presunção, atrevo-me a pedir ao leitor que encare as linhas que se seguem como uma variação jornalística sobre as marcas do imponderável (humano ou divino) no universo do cineasta polaco. Enviadas as perguntas, chegou um primeiro mail, incompleto, redigido à pressa durante a rodagem em que está envolvida; uma segunda mensagem, ainda incompleta, corrigia a anterior e oferecia palavras ternas e concisas sobre Kieslowski (ou apenas “K”, como ela o nomeia); enfim, um terceiro conjunto de respostas rematava com a justeza da ironia: “Creio que, assim, já tem matéria suficiente.”
Se é verdade que Kieslowski foi também um delicado retratista dos enigmas do feminino, eis o que podemos confirmar através dos seus quatro títulos finais (precisamente aqueles que, agora, foram repostos em novas cópias): A Dupla Vida de Véronique (1991) e a célebre “Trilogia das Cores”, formada por Azul (1993), Branco (1994) e Vermelho (1994).
Irène Jacob começou por ser a Véronique do primeiro filme (reencontrando Kieslowski em Vermelho). Em boa verdade, tratava-se de representar duas personagens — Weronica e Véronique, uma na Polónia, outra em França — ligadas por algo de tão forte que parece provir do domínio do sagrado: “O desejo de K era filmar as coisas normalmente invisíveis num ecrã: a sensação de, por vezes, se estar acompanhado na solidão. Ao escrever a história das duas jovens a viver em dois países diferentes, que seriam a mesma sem se conhecerem, procurava expor esse mundo interior em que, por vezes, nos sentimos ligados a alguém, outras vezes perdidos.”
“K era alguém muito atento às coincidências, por vezes de maneira muito lúdica — era um grande observador e a sua câmara funcionava como um microscópio.” Mas, sublinha a actriz, tal atitude não decorria de uma lógica abstracta. Era mesmo algo indissociável de todo um contexto histórico: “Tendo trabalhado na Polónia com uma censura muito severa, habituou-se, tal como os seus colegas cineastas, a fazer filmes em que, como ele dizia, se deixa ao espectador a tarefa de completar as frases...” Aliás, curiosamente, algo desse método transpunha-se para a relação com os actores. Como? Quando Irène Jacob lhe perguntava porque é que Véronique fazia um gesto ou adoptava uma atitude, ele dizia: “Prefiro que sejas tu a responder-me.”
Daí, talvez, a contagiante sensação de liberdade que emana das histórias de Kieslowski, a ponto de podermos supor que grande parte do que vemos terá resultado de alguma forma de improvisação. Mas não: “Não havia qualquer improvisação no momento de filmar. K incentivou-me mesmo a criar um dicionário de gestos para Weronica e Véronique, começando por reflectir nos gestos que fazia quando estava sozinha; além do mais, todas as noites, tínhamos um encontro para discutir a cena do dia seguinte.”
Tal rigor (“seguíamos o argumento à letra”) não impedia que cada filme fosse concebido como uma estrutura em aberto, nomeadamente no domínio da montagem. A Dupla Vida de Véronique teve mesmo “umas quinze versões” a ponto de o realizador “ter imaginado três finais diferentes que seriam apresentados em diferentes salas de cinema.”
Centrado na relação inesperada entre uma jovem modelo, de nome Valentine, e um juiz retirado, interpretado por Jean-Louis Trintignant, Vermelho é um conto moral sobre a Fraternidade (depois da Liberdade e Igualdade, respectivamente em Azul e Branco): “O tema é tratado através de dois seres que, a priori, não têm nada em comum. Para K, a relação entre o juiz e Valentine decorre do confronto que ele sentia em si mesmo entre a desilusão resultante da experiência e o optimismo da juventude.”
Vermelho envolveu uma componente ainda mais pessoal. De facto, o essencial da rodagem teve lugar em Genebra, a cidade onde Irène Jacob viveu a infância e a adolescência: “Foi muito emocionante regressar aos lugares em que tinha crescido. Para a minha personagem, K perguntou-me qual era, em criança, o meu nome preferido. E eu disse-lhe: Valentine.”
Nesse jogo de intimidades, o cineasta envolvia-se como o mais omnipresente, ainda que mais invisível, dos actores: “K ajoelhava-se mesmo por baixo da câmara, que estava a dois passos de nós — quase fazia parte da imagem. No princípio, Jean-Louis sentia-se muito impressionado com isso. Durante a filmagem fazia-nos sinais, mais lento, uma hesitação, uma tensão, como um maestro — por vezes, tocava-nos num joelho.” Para que o resultado fosse mais claro para o espectador? Talvez. Em todo o caso, não esquecendo um princípio muito directo: “Se começar a ficar demasiado explícito, eu corto!”