quinta-feira, dezembro 03, 2015

Celebrando os 80 anos de Woody Allen

ZELIG (1983)
No dia 1 de Dezembro, Woody Allen celebrou 80 anos — nesse dia, este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'O cómico que gosta do drama faz hoje 80 anos'.

No liceu, Allan Stewart Konigsberg foi um bom aluno, embora não muito preocupado com as notas. Em boa verdade, era mais conhecido pelos seus dotes como jogador de basebol. Dir-se-ia que cultivava o paradoxo, de tal modo que, por volta dos 15 anos, começou a escrever textos cómicos. Quando se atreveu a enviar alguns exemplos para diversos agentes e actores da Broadway, o seu talento foi logo reconhecido. E começou a receber encomendas, acabando por ser contratado, ainda antes de completar 20 anos, para a equipa de argumentistas do programa The NBC Comedy Hour, em Los Angeles. Algures, obcecado pelo valor das coisas simples e directas, tinha começado a assinar como Woody Allen — faz hoje 80 anos e não será exagero dizermos que é uma lenda viva.
Nasceu a 1 de Dezembro de 1935. Em Nova Iorque, claro, como bem sabemos pelo modo como a grande metrópole aparece e se transfigura nos seus filmes como uma verdadeira personagem. Na nossa mitologia americana, Manhattan é tanto um lugar como o título de um dos seus filmes mais célebres (lançado em 1979).
Seja como for, o calendário atrai também uma paradoxal ironia. Porque Woody Allen pode ser um respeitável octogenário, mas continuamos a acolhê-lo como alguém que conservou uma certa rebeldia adolescente. Não exactamente à maneira agreste de um James Dean (a comparação, repare-se, não tem nada de especulativo, já que o actor de A Leste do Paraíso e Fúria de Viver, nascido em 1931, pertencia à mesma geração de Woody Allen, essa que arquitectou a sua identidade sob o signo da herança política e simbólica da Segunda Guerra Mundial). Ele é antes o eterno, enigmático e sedutor protagonista de uma história pessoalíssima, por ele escrita, mas à qual não quer atribuir demasiado valor metafórico: “Não quero conquistar a imortalidade através do meu trabalho. Quero conquistá-la não morrendo.” Aliás, esta frase, por certo das mais conhecidas do seu autor, nem sempre é citada na íntegra, de modo a que possamos reconhecer o seu risonho pragmatismo: “Não quero viver no coração dos meus compatriotas, quero viver no meu apartamento.”
Contas redondas, desde 1969, ano de O Inimigo Público (título original: Take the Money and Run), Woody Allen tem dirigido um filme por ano. De tal modo que a notícia da conclusão de cada um dos seus filmes surge quase sempre acompanhada pela revelação de um novo projecto ainda sem título — “Untitled Woody Allen project” passou a ser a antecipação de algo que vai acontecer no próximo ano... Neste momento, sabemos que lançará um novo filme em 2016 mas, para além dos nomes do elenco (Kristen Stewart, Blake Lively, Jesse Eisenberg, etc.), nem sequer foi divulgada uma sinopse.
A arte da escrita, a meio caminho entre uma visão mais ou menos sarcástica da experiência humana e uma ambígua lógica autobiográfica, está no cerne de todo o trabalho de Woody Allen. Naquele que, provavelmente, continua a ser o seu filme mais famoso, Annie Hall (1977), a sua personagem, de nome Alvy Singer, inicia mesmo o filme partilhando com o espectador uma divertida perspectiva existencial: “Há uma velha anedota sobre duas velhinhas que estão numa estância das montanhas Catskill. Diz uma delas: ‘Neste lugar, a comida é horrível.’ E diz a outra: ‘É verdade, e as doses são tão pequenas’.”. Reforçando este novo paradoxo, Singer/Allen remata: “No essencial, é assim que vejo a vida — plena de solidão, miséria, sofrimento e infelicidade, e acaba tudo demasiado depressa.”
Talvez por isso, somos muitas vezes levados a dividir a obra de Woody Allen em dois capítulos mais ou menos autónomos: de um lado, os filmes visceralmente cómicos, desde as variações burlescas da primeira fase, como Bananas (1971) e O ABC do Amor (1972), até títulos como Sombras e Nevoeiro (1991), evocando com ironia a herança expressionista, ou Vigaristas de Bairro (2000), uma pura comédia à moda antiga; do outro, os dramas mais ou menos inspirados na herança de Ingmar Bergman, a começar por Intimidade (1978), porventura um dos seus trabalhos mais amargos e também mais esquecidos, desembocando na depuração de Blue Jasmine (2013), que valeu um Oscar a Cate Blanchett.
Em qualquer caso, tal divisão conduz-nos a uma definição do ser humano como um caudal de permanentes e irresolúveis contradições. No recente Homem Irracional, estreado há poucos meses, a desconcertante personagem de Joaquin Phoenix, mesmo atraindo o mais brutal irracionalismo, não era também um modelo de metódico racionalismo?
Nesse filme inclassificável que é Zelig (1983), Woody Allen assumia mesmo alguém capaz de se identificar com qualquer outra personagem, em qualquer contexto, a ponto de apenas existir como um reflexo imponderável dos outros. Não era exactamente um farsante, antes um exemplo vivo da fragilidade do factor humano. Talvez possamos invocar uma outra máxima de Woody Allen para, pelo menos, tentarmos enfrentar a crueza dessa fragilidade: “A vida não imita a arte, imita a má televisão.”