quarta-feira, novembro 11, 2015

Paris no coração da América

A passagem de Wim Wenders por Portugal, no âmbito do LEFFEST, é pretexto para uma breve revisitação do seu universo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Novembro).

Uma das obras fulcrais na filmografia de Wim Wenders tem um título que apetece usar como uma espécie de lema do movimento temático e estético do seu cinema. Chama-se Ao Correr do Tempo (1976) e centra-se em dois amigos acidentais (Rüdigler Vogler e Hanns Zischler) que, à maneira clássica dos filmes on the road, partem para uma desencantada deambulação alemã.
Tal deambulação está marcada pelas feridas interiores de uma Alemanha dividida pelo Muro de Berlim, facto que ecoará, mais tarde, de modo dolorosamente poético, no vai-vém dos anjos de As Asas do Desejo (1987). Em qualquer caso, importa sublinhar que os enigmas e silêncios da identidade alemã pontuam o trabalho de Wenders muito para além da nitidez de qualquer fronteira.
Há nele um misto de ansiedade e promessa de redenção que encontrou um eco muito especial no filme Até ao Fim do Mundo (1991) que, agora, no LEFFEST, Wenders pôde vir apresentar com a verdadeira duração com que foi concebido. No universo futurista de Até ao Fim do Mundo, ironicamente tão próximo do nosso presente, a rarefacção dos lugares, ou melhor, da sua geografia mental é mesmo uma questão em que a evolução tecnológica se cruza com as mais finas perplexidades existenciais.
Wim Wenders
Nesta perspectiva, o filme mais conhecido do cineasta alemão, Paris, Texas (1984), continua a ser uma referência incontornável e inspiradora. Desde logo, porque a história do casal (Harry Dean Stanton/Nastassja Kinski) que se encontra e desencontra envolve um dos temas mais delicados, e também mais obsessivos, do seu universo: a infância e a sua persistência no interior do mundo dos adultos. Mas também porque tudo se joga a partir de uma dicotomia simbólica admiravelmente condensada no título: Paris, Texas desenha o palco de uma coabitação entre os valores de uma visceral cultura europeia e a fascinante pluralidade do espaço americano.
Deparamos, assim, com uma clara demarcação de todos os maniqueísmos políticos, ideológicos e morais que, em particular na percepção mediática do cinema, insistem em opor “Europa” e “América” de forma grosseira e simplista. No trabalho de Wenders, podemos encontrar uma disponibilidade criativa alheia a tal oposição em filmes tão emblemáticos como O Amigo Americano (1977), inspirado no romance Ripley’s Game, de Patricia Highsmith, Hammett, Detective Privado (1982), produzido por Francis Ford Coppola, e Crimes Invisíveis (1997), um “thriller” passado em Los Angeles.
Crimes Invisíveis, por certo um dos filmes mais mal amados de Wenders, é mesmo um caso exemplar de uma visão cuja lucidez a passagem do tempo apenas reforçou. Em cena está um espaço (urbano e afectivo) gerido pelos mais sofisticados sistemas de vigilância, ameaçando as singularidades do factor humano. Em última instância, Wenders sabe revelar-nos a comovente persistência do humano, mesmo no deserto, mesmo em Paris, algures no coração da América.