sábado, novembro 28, 2015

O jornalismo face ao horror

A LISTA DE SCHINDLER (1993)
Como lidamos com o terrorismo? Em particular, como avaliamos as questões básicos do informar e dar a ver? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Novembro), com o título 'As nossas narrativas do horror'.

Uma vez, num contexto cultural bem diverso, perante a possibilidade de se fazer uma abordagem jornalística do filme A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, alguém me replicou, com toda a seriedade e simpatia, que seria importante poder ligar o filme a um “tema”...
Arrepio-me sempre que penso em tal episódio. Detecto nele um muito tradicional menosprezo pelo fenómeno cinematográfico, tão enraizado e assumido que, nem mesmo face a uma abordagem do Holocausto, tal atitude consegue compreender que o “tema” é... o próprio filme.
Mas não vejo a questão como especificamente ideológica. Ou melhor: avalio-a como sintoma de uma ideologia jornalística que continua a ter um peso imenso no nosso espaço audiovisual, permanecendo impensada (quando não automaticamente aplicada) por muitos profissionais. A sua regra nº 1 é esta: nada acontece como facto cru, tudo carece de ser enquadrado numa “temática” mais ou menos repetitiva e determinista.
Exemplo caricato, de todos os dias, é a militância pueril com que muitos comentadores de futebol falam de “justiça” a propósito dos resultados dos jogos — continuo à espera que algum explique em que tribunal devem ser julgadas as equipas que, segundo eles, jogam “mal” e ganham jogos (mas o silêncio persiste, o que significa que esses mesmos comentadores se assumem como oráculo, sem recurso, da “justiça” que proclamam).

in La Voix de l'Amérique
Exemplo incomparavelmente mais dramático e perturbante é a avalanche de imagens em torno do 13 de Novembro, em Paris. Tenho consciência de que não será legítimo reduzir tais imagens a um “sentido” único e unívoco (nem sequer partir daí para duvidar da seriedade dos que, profissionalmente, as trabalham). Mas importa reflectir um pouco sobre os seus efeitos globais, quanto mais não seja para sermos dignos dos valores da “globalização” que tanto apregoamos.
E há dois desses efeitos que parecem impor-se automaticamente, como se não houvesse ninguém a seleccionar e emitir as imagens. O primeiro é de natureza “simbólica”: nada acontece que não seja rapidamente contaminado pelo sublinhado de alguma retórica; no limite, a imagem de um cadáver já não emana da brutalidade dos factos porque se insere numa linguagem em que o valor principal parece ser a produção continuada de clímaxes. O segundo decorre desse método de acumulação: a repetição incessante das mesmas imagens, ainda que sustentada pela mais pura compaixão humana, tende a produzir um clima de descarnada banalização — aquilo que se vê todos os dias, a todas as horas, mostrado nas mesmas sequências e montagens, acaba por existir como um elemento “normal” da paisagem social.
Em tempos de tantas crispações juvenis, espero que seja claro que não se trata de suspeitar de qualquer “cumplicidade” da informação democrática com o horror do terrorismo. Seja como for, mantemo-nos em défice: pensamos pouco, ou quase nada, o modo como o terrorismo também desafia as práticas jornalísticas, em particular as narrativas televisivas.