domingo, novembro 08, 2015

O futebol e o seu "patamar mental"

GEORGE GROSZ
Subúrbios
1915-16
Até onde a retórica futebolística irá formatar as formas quotidianas de falar e pensar? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Novembro), com o título 'Sob o jugo do futebol'.

1. Quem são as personagens mais protegidas em televisão? Os treinadores de futebol. Os políticos, coitados, não podem dizer nada que envolva alguma ambiguidade, imprecisão ou distracção, sem serem de imediato castigados no altar da “verdade” televisiva. Os treinadores, entretanto, conseguem continuar a proclamar as coisas mais abstrusas. Por exemplo, essa ideia transcendente segundo a qual um golo do adversário “condicionou” a performance da equipa... Como quem diz: podíamos ter ganho, não fosse o facto lamentável de o adversário, demonstrando total falta de cordialidade, se ter lembrado de marcar golos.

2. Um cliché que quase todos os comentadores de futebol repetem como se estivessem a confirmar uma verdade cientificamente inamovível é o da oposição entre jogar com o “coração” e jogar com a “cabeça”... Poderíamos supor que, para lá de tão admirável psicologia de bolso, não havia evolução possível. O certo é que, recentemente, surgiu o conceito de “patamar mental”. O que é? Aparentemente, um sistema de valores e certezas com o qual se ganham jogos... O leitor poderá perguntar: mas não é quando as bolas entram nas balizas? Parece que não.

3. Desgraçadamente, o futebol vive parasitado por lugares-comuns deste género, repetidos dia após dia numa lengalenga que, na prática, é das coisas mais poderosas no interior do nosso espaço mediático. Poder de quê? De nos afastar de um desporto afinal tão fascinante, em especial através do seu tratamento televisivo. Mas poder também de reduzir a possibilidade de pensamento e diálogo a uma patética acumulação de palavras e expressões que já nem irónicas conseguem ser. Em boa verdade, o quotidiano mediático português vive sob o jugo do futebol, destruindo o prazer de o ver e consagrando a sua grosseira formatação como jogo, linguagem e espectáculo.