domingo, novembro 01, 2015

O "Correio da Manhã" e a sua mordaça

I. Toda a gente sabe, mas ninguém o diz: a solução para impedir velocidades superiores a 120km/h nas auto-estradas não passa por "civismo" (hoje em dia fora de moda) ou "campanhas de sensibilização" (inventadas pelos políticos do marketing) — seria preciso começar a fabricar automóveis cujos motores não dessem mais de 120km/h...

II. Algo de semelhante acontece em relação ao problema do respeito pelo segredo de justiça — seria preciso que todos os órgãos de comunicação social assumissem as suas regras, recusando-se, liminarmente e sem excepções, a publicar qualquer dado, por mais anedótico que pudesse parecer, sobre qualquer processo em segredo de justiça (a eventual argumentação no sentido de se criar uma outra lei para o segredo de justiça é outra questão).

III. Correspondendo a uma providência cautelar da defesa de José Sócrates, o Tribunal da Comarca de Lisboa determinou que o Correio da Manhã e todos os meios de comunicação do grupo Cofina estão proibidos de dar notícias que divulguem dados da Operação Marquês [ver notícias: 1 + 2 + 3].

IV. Consequência imediata, lamentavelmente pueril, nas páginas do Correio da Manhã: a agitação do fantasma da censura, uma vez mais rasurando todas as especificidades políticas (e politicamente repressivas) da conjuntura em que vigorou em Portugal um regime censório (e também, claro, com a omissão de qualquer discussão sobre o "estilo" informativo do próprio Correio da Manhã).

V. Exemplo quotidiano de um jornalismo especulativo e fulanizado (integrando linguagens de percepção do mundo consagradas na irresponsabilidade dominante nas chamadas "redes sociais"), o Correio da Manhã tem-se apresentado, através de imagens como a que acima se reproduz, como vítima central de uma "mordaça" imposta pelos tribunais. Há qualquer coisa de obsceno nesta colagem a uma campanha suscitada pela indignação face a um hediondo crime terrorista [video: Le Monde], campanha que, importa também recordá-lo, nunca foi linear e cuja complexidade simbólica há muito foi deitada para o lixo da aceleração quotidiana da "informação".


VI. Na verdade, a determinação do Tribunal da Comarca de Lisboa, ainda que fundamentada pela lei vigente, não vai resolver nada no plano jornalístico — seria preciso que toda a classe jornalística assumisse um silêncio sepulcral face a todos os dados de todos os processos em segredo de justiça.

VII. Transformar o Correio da Manhã em bode expiatório de uma prática que, infelizmente, tem sido transversal no espaço mediático português, eis o que não faz sentido. Se for possível repensar esse espaço e as suas dramáticas insuficiências, então a significação simbólica do protesto ganhará uma pertinência radical, nesse caso justificando-se dizer: Je suis CM.