quinta-feira, outubro 15, 2015

"Minority Report": veja as diferenças

2002
Treze anos depois do filme de Spielberg, Minority Report é também título de uma série de televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Outubro), com o título 'Qual é a herança de Steven Spielberg?'.

Lembram-se de Minority Report (entre nós: Relatório Minoritário), o admirável filme que Steven Spielberg dirigiu, em 2002, a partir de um conto de Philip K. Dick? Tudo se passava num futuro em que se tornou possível antecipar os crimes que vão ser cometidos — Tom Cruise interpretava o chefe de uma brigada da polícia especializada em prender os potenciais criminosos... Num misto de utopia tecnológica e pesadelo “orwelliano”, era uma espantosa fábula sobre as fronteiras da própria identidade humana.
Agora, com produção da companhia de Spielberg (Amblin), surgiu uma série televisiva homónima (Fox), desenvolvida por Max Borenstein, argumentista de Godzilla (2014). Mesmo admitindo que a evolução da série possa conter contrastes mais ou menos inventivos, basta observar o episódio-piloto para compreender que tudo acontece num registo bem diferente, oposto mesmo ao filme de Spielberg. Desde logo, porque não existe nenhuma personagem dramaticamente tão complexa como a de Tom Cruise; depois, porque o novo Minority Report ilustra um certo novo-riquismo televisivo (com recursos cada vez mais impressionantes, é um facto) em que a ostentação visual obedece a uma lógica pueril que combina os clichés dos jogos de vídeo com um tratamento enraizado no universo publicitário.
2015
O exemplo é tanto mais sintomático quanto ilustra a deriva de um sistema de produção que nem sempre sabe gerir a riqueza do seu património cinematográfico. Mesmo não esquecendo que a performance comercial não pode ser lida como um mero efeito (positivo ou negativo) de tal situação, registe-se que os valores de audiência nos EUA de Minority Report são banalíssimos. Na sexta-feira, The Hollywood Reporter considerava a série “morta à nascença”, noticiando que a Fox, num gesto irremediavelmente significativo, decidiu reduzir a encomenda inicial de 13 episódios para apenas 10.
É tempo de contrariar a pobre mitologia que gosta de proclamar que as séries de televisão passaram a ser o paraíso do audiovisual. Não se trata de negar, entenda-se, as coisas notáveis que têm surgido ao longo dos anos, desde essa experiência charneira que foi Twin Peaks (1990-91); trata-se, isso sim, de não escamotear o facto de a abundância da produção televisiva estar a gerar muitas mediocridades, praticando o vício dos “remakes” e sequelas que era apanágio do cinema (veja-se o desastre que é a segunda temporada de Empire).
Que tudo isto tenha a ver com a herança de um cineasta tão importante como Spielberg, eis o que não deixa de envolver alguma amarga ironia. E tanto mais que os seus dois filmes mais recentes — Cavalo de Guerra (2011) e Lincoln (2012) — são objectos enraizados no mais sofisticado classicismo, anunciando-se o próximo, A Ponte dos Espiões (estreia portuguesa: 26 Novembro), como um drama sobre a Guerra Fria. O exemplo televisivo de Minority Report é esclarecedor: o essencial dessa herança não é a componente tecnológica, mas sim a arte da narrativa.