quarta-feira, outubro 14, 2015

Memória de Chantal Akerman

Chantal Akerman faleceu no dia 6 de Outubro, em Paris, contava 65 anos — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (7 de Outubro), com o título 'Morreu a cineasta de todas as solidões'.

Ao fim da manhã de terça-feira, surgiu a notícia da morte da cineasta belga Chantal Akerman, ocorrida na véspera. Nascida em Bruxelas, a 6 de Junho de 1950, Akerman ter-se-á suicidado (de acordo com informação veiculada pelo jornal Le Monde).
Por certo um dos nomes de maior prestígio da produção cinematográfica da Bélgica, Akerman talvez possa ser identificada como o símbolo mais forte da "nova vaga" do cinema do seu país, ainda que o rótulo careça de discussão. De facto, ela pertence à geração posterior às convulsões dos "novos cinemas" da década de 60, gostando mesmo de referir que decidiu ser cineasta em 1965 (portanto, aos 15 anos de idade), depois de ter visto Pedro, O Louco, de Jean-Luc Godard. Três anos mais tarde, inscreveu-se no INSAS (Instituto Nacional Superior das Artes do Espectáculo) para estudar cinema. Seria uma experiência breve que, em todo o caso, desembocou na realização da sua primeira curta-metragem, Saute Ma Ville (1968), porventura um objecto premonitório de vários outros momentos da sua filmografia, já que, assumindo também a função de intérprete, aí retratava a solidão de uma mulher em paisagem urbana.
A sua formação cinematográfica, tanto quanto a sua experiência de vida, ficaria fortemente ligada à decisão, tomada no começo da década de 70, de partir par Nova Iorque. A descoberta dos filmes de criadores como Andy Warhol, Michael Snow ou Jonas Mekas revelou-lhe as potencialidades de uma atitude experimental capaz de questionar os padrões tradicionais da narrativa cinematográfica e, nessa medida, "o tempo e a energia" de cada filme. Ao mesmo tempo, tal atitude nunca excluiu, terá mesmo favorecido, uma atenção particular às paisagens (supostamente) banais do quotidiano, nessa medida intensificando um gosto visceralmente realista. Foi nos EUA que dirigiu alguns dos seus primeiros trabalhos, incluindo Hotel Monterey (1972), sobre um amargo "paraíso perdido" habitado por marginais da sociedade.
Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) foi o filme que impôs o seu nome nos circuitos internacionais, podendo simbolizar o risco estético da sua obra, tanto quanto a sua contundência temática — ou, se preferirmos, a metódica articulação das estruturas da ficção com algumas componentes de raiz documental. Encenando de forma austera e obsessiva, através de longos planos-sequência, a vida solitária de Jeanne Dielman (interpretada pela prodigiosa Delphine Seyrig), o filme é um testemunho de uma angústia urbana vivida no feminino que, quase inevitavelmente, atraiu o rotulo de "feminista" (que, em qualquer caso, a propria Akerman nunca favoreceu).
O filme seguinte, Je, Tu, Il, Elle (1976), em que Akerman volta a integrar o elenco, poderá ser descrito como uma crónica intimista de reavaliação das relações humanas em que, no limite, se discutem os laços afectivos e as identidades sexuais. Curiosamente, por essa altura, Akerman encontrou em Portugal, mais precisamente no Festival da Figueira da Foz, um espaço privilegiado de revelação. Em 2012, o DocLisboa e a Cinemateca dedicaram-lhe uma retrospectiva.
Sem nunca ser estritamente auto-biográfica, a sua filmografia pode ser compreendida como um compêndio das suas viagens (afectivas ou geográficas), inventariando personagens e contando histórias marcadas por todas as formas de solidão. Por vezes, ironicamente, integrando componentes da comédia musical, como em Golden Eighties (1986); outras, explorando a sedução primitiva do melodrama, no caso de A Cativa (2000), uma "modernização" de La Prisonnière, de Marcel Proust, de alguma maneira contaminada pela herança romanesca de Alfred Hitchcock.
Nas últimas duas décadas, alguns filmes de cariz documental ilustram o empenho de Akerman em dar a ver territórios marcados por grandes convulsões sociais e políticas, por assim dizer observando a redistribuição das solidões de personagens anónimas, mas não menos intensas. Sintomas exemplares dessa atitude são D'Est (1993), observando o Leste europeu depois da Queda do Muro de Berlim, De l'Autre Côté (2002), sobre as convulsões na fronteira México/EUA, e Là-Bas (2006), visão tão transparente quanto enigmática da sociedade israelita. A Loucura de Almayer (2011), inspirado em Joseph Conrad, foi o seu derradeiro filme estreado nas salas portuguesas. Depois, ainda dirigiu No Home Movie, este ano estreado no Festival de Locarno e agendado para o DocLisboa (22 Out./1 Nov.) — aí encontramos uma personagem que já conhecíamos de News from Home (1977): a mãe da cineasta, sobrevivente de Auschwitz.