quarta-feira, setembro 09, 2015

Uma pizza para José Sócrates

BLOW-UP
1966
Dir-se-ia que tudo se passa como em torno da casa do Big Brother... O fait divers do homem da pizza é, infelizmente, revelador das misérias televisivas do nosso tempo e do seu poder de contaminação social — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Setembro).

Lembram-se do fotógrafo interpretado por David Hemmings na obra-prima Blow-Up (1966), de Michelangelo Antonioni? Convencido que as suas imagens de um casal num parque de Londres contêm um elemento estranho junto a uns arbustos (parece-lhe mesmo um cadáver), entrega-se a um processo metódico de ampliação (blow-up) das fotografias, procurando desesperadamente um sinal daquilo que viu, ou julgou ver...
Com o passar dos anos, habituei-me a uma atitude semelhante face ao quotidiano do espaço televisivo: desde os horrores da reality TV até aos programas vespertinos com cantores “pimba”, custa-me a acreditar e sou levado a duvidar daquilo que certas imagens me dão a ver. E não quero renovar a discussão voluntarista, quase sempre irrisória, sobre a figuração de “sexo & violência”, rótulo que para muito gente séria (em particular da classe política) parece esgotar as razões para reflectirmos sobre as representações televisivas. Nada disso: estou apenas a colocar-me na posição do espectador espantado pelas opções que, hoje em dia, não poucas vezes, fazem aquilo a que se dá o nome de “informação”.
Exemplo destes dias: os microfones apontados para o homem que foi entregar uma pizza à casa onde José Sócrates se instalou, depois da alteração das condições da sua prisão preventiva. A pergunta é muito simples: que motivação, física ou metafísica, confere importância e pertinência ao facto? Ou ainda: qual a relação entre a rotina laboral do homem da pizza e o processo judicial que envolve um cidadão chamado José Sócrates?
Bem sei que se tornou quase impossível pensar estas questões na sociedade portuguesa. Antes do mais, por causa do poder das chamadas redes sociais que, com poucas excepções, promovem um conceito de “sociedade” em que predominam o insulto e a difamação. Depois, porque o conteúdo dessas redes passou a ser regularmente citado como matéria “jornalística”. Enfim, porque a classe política, aparentemente sem excepções, se acomodou a tal estado de coisas, dispensando-se de reflectir sobre os seus efeitos de desgaste, não apenas para o exercício da política, mas também para a mais básica definição do que seja uma relação humana, isenta das obrigações do “espectáculo” e sustentada por valores humanistas.
Permito-me, aliás, relembrar um dado óbvio, mas que o burburinho “social” há muito rasurou. Se os processos de demonização de José Sócrates são vergonhosos, o que está em causa também não envolve a sua santificação (ou seja de quem for). Mesmo que ele venha a ser considerado culpado no processo que levou à sua prisão, nada disso exclui a urgência de alguma reflexão sobre esta sociedade de obscenas dramatizações de entregas de pizzas e outros fenómenos do mesmo quilate. Nessa reflexão, o Partido Socialista podia (e, a meu ver, devia) dar algum exemplo, sobretudo para se demarcar da cobardia intelectual que quase toda a classe política tem mostrado face ao crescente populismo televisivo.