INTERMEZZO 1939 |
O centenário do nascimento de Ingrid Bergman ocorreu no passado dia 29 de Agosto — este texto evocativo foi publicado no Diário de Notícias (no próprio dia), com o título 'Ingrid Bergman ou a arte das emoções'.
Ingrid Bergman nasceu em Estocolmo no dia 29 de Agosto de 1915 — faz hoje 100 anos. Morreu no dia do seu 67º aniversário, a 29 de Agosto de 1982. Talvez esta sobreposição de datas possa condensar algo de essencial na biografia da actriz sueca que triunfou em Hollywood. A saber: uma transparência simbólica, tecida de vulnerabilidade, em que a beleza da dimensão humana se pode renovar até na contemplação silenciosa do trabalho da morte.
Há um riso tocante em tudo isto. Testemunha-o um sugestivo episódio registado na autobiografia de Bergman, My Story, publicada em 1980. Diz respeito à sua relação com Alfred Hitchcock, que a dirigiu em três filmes admiráveis: A Casa Encantada (1945), Difamação (1946) e Sob o Signo de Capricórnio (1949). Aliás, no dia 7 de Março de 1979, na homenagem prestada pelo American Film Institute a Hitchcock, ela evocou esse mesmo episódio, a propósito do facto de o mestre do “suspense” nem sempre mostrar grande disponibilidade para discutir a lógica interna de cada filme — “está no argumento”, dizia ele. Pois bem, na rodagem de A Casa Encantada, Bergman atreveu-se a comentar a definição da sua personagem, uma psicanalista apostada em desvendar as memórias traumáticas que assombram o homem que ama (Gregory Peck). E disse ao realizador: “Não sinto nada daquilo... Acho que não sou capaz de lhe dar aquele tipo de emoção.” Ao que Hitchcock, não muito bem disposto, respondeu: “Ingrid... finge!”
São peripécias preciosas para compreendermos o sistema “hitchcockiano”. Mas envolvem também a energia mais íntima do labor de Bergman. É certo que, como ela sublinhou, a observação a auxiliou em muitas situações, sobretudo quando alguns realizadores a massacraram com “instruções impossíveis” e “muitas coisas difícieis de fazer”. Ao mesmo tempo, tal não exclui a procura dessa verdade visceral que um actor ou uma actriz podem representar em frente de uma câmara de filmar — privilegiar as emoções, eis a questão.
Na prática, tudo poderia ter corrido de maneira bem diversa, inscrevendo Bergman na história como um detalhe mais ou menos fotogénico de uma época em que, sob a impulsão do som e a consolidação da película a cores, Hollywood refazia todos os seus modelos de produção. Afinal de contas, a actriz foi para os EUA para, de alguma maneira, encontrar o seu lugar nesse sistema.
Quem a convidou a rumar à América foi o produtor David O. Selznick, na altura uma das personalidades mais poderosas e influentes em toda a dinâmica de Hollywood. Descobrira-a em Intermezzo (1936), melodrama sueco dirigido por Gusav Molander, em que Bergman interpretava uma professora de piano que se apaixona por um violinista de fama mundial, pai de uma criança sua aluna; seduzido pela presença radiosa da actriz, Selznick imediatamente concebeu o projecto de uma versão americana de Intermezzo, que viria a concretizar-se em 1939, com Leslie Howard no papel do violinista e Gregory Ratoff a assinar a realização.
Intermezzo constituiu um momento importante de revelação, mas não passou de um sucesso mediano. De facto, naquele ano podia dizer-se que Selznick concorria contra si próprio, uma vez que lançara também a mais espectacular produção de 1939, E Tudo o Vento Levou, vencedor dos Oscars e líder absoluto das bilheteiras. Seguiu-se uma prova de fogo para Bergman, contracenando com Spencer Tracy na versão de O Médico e o Monstro (1941), de Victor Fleming (ironicamente, o realizador que assinara E Tudo o Vento Levou). Em qualquer caso, a definitiva passagem para o domínio da mitologia só aconteceria com Casablanca (1942), de Michael Curtiz — Rick e Ilsa, quer dizer, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman inscreveram-se definitivamente na galeria dos mais puros pares românticos de toda a história do cinema.
O primeiro dos três Oscars de Bergman, obtido com Meia Luz (1944), de George Cukor, confirmou o reconhecimento da actriz como figura de excelsa maturidade. É bem verdade que, na altura, não havia nenhuma crise de personagens femininas densas e consistentes (como aconteceu em anos recentes, desencadeando mesmo protestos de alguém como Meryl Streep). Ainda assim, não deixa de ser curioso observar que Bergman representava uma pose inequivocamente adulta que contrastava com algumas das grandes vedetas femininas do mesmo ano: Elizabeth Taylor, por exemplo, tinha 12 anos quando foi protagonista (com Mickey Rooney) de A Nobreza Corre nas Veias, 12º título mais rentável de 1944 (Meia Luz foi 13º no top das receitas).
Se ainda hoje hesitamos em classificar a carreira de Bergman como um capítulo do star system, isso deve-se menos à aura das suas interpretações — sendo o já citado Sob o Signo de Capricórnio, de Hitchcock, talvez o exemplo mais sublime e mais esquecido — e mais ao facto de, a certa altura, a história da sua carreira se confundir com as convulsões da sua história privada e, em particular, com o “escândalo” do casamento com Roberto Rossellini.
Dito de outro modo: a partir do momento em que surgiu no emblemático Stromboli (1950), primeiro dos títulos sob a direcção de Rossellini, Bergman voltou a ser “apenas” uma actriz europeia. Não porque tenha deixado de participar em produções de raiz americana; antes porque, definitivamente, adquiriu o estatuto “apátrida” de alguém que, em última instância, passara a simbolizar a mais bela das abstracções. A saber: uma ideia eminentemente clássica de talento, mistério e “glamour”.
Com alguma ironia, foi a sua derradeira interpretação cinematográfica que, num certo sentido, a devolveu à Suécia, filmando Sonata de Outono (1978) sob a direcção de Ingmar Bergman (nenhuma relação familiar). De acordo com as memórias do realizador, não terá sido a mais feliz das rodagens, desde logo porque ele estava exilado devido a problemas com o fisco sueco (as filmagens decorreram na Noruega, com financiamentos alemães e britânicos). Além do mais, a relação pouco pacífica de Bergman-realizador e Bergman-actriz deixou-os insatisfeitos com os resultados — enganaram-se ambos, o que nos ajuda a tolerar as humanas imperfeições daqueles que mais admiramos.
>>> Este é um depoimento de Isabella Rossellini, filha de Ingrid Bergman, programado para o dia 5 de Setembro pelo canal francês TCM Cinéma, e previamente divulgado pelo jornal Libération.
>>> Site do livro Ingrid Bergman — A Life in Pictures (2013), editado por Isabella Rossellini e Lothar Schirmer.