Apesar de chegar às salas portuguesas quase dois anos passados sobre o seu lançamento em França, O Jovem Prodígio T. S. Spivet é um dos grandes acontecimentos do Verão cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Agosto), com o título 'A herança de Méliès'.
[ 1 ]
Numa persistente demonstração de ignorância, algum jornalismo cinematográfico (?) passou a classificar as aventuras de super-heróis, com mais ou menos objectos voadores, como filmes “de efeitos especiais”... Assim se rasura mais de um século de história das técnicas e narrativas cinematográficas — na verdade, em filmes rodados nos anos finais do séc. XIX, Georges Méliès (1861-1938) já sabia muito bem como desafiar as ilusões naturalistas da imagem em nome da fantasia e do maravilhoso.
Goste-se mais ou goste-se menos do trabalho de Jean-Pierre Jeunet (n. 1953), creio que faz sentido considerar que há nele uma disponibilidade para contrariar a pacatez do naturalismo que, a meu ver, ficou expressa com especial felicidade em títulos como Alien: O Regresso (1997) e O Fabuloso Destino de Amélie (2001). O caso de O Jovem Prodígio T. S. Spivet, porventura o seu filme mais belo, é tanto mais fascinante quanto a exaltação do imaginário infantil se apresenta, aqui, indissociável de uma sofisticação técnica capaz de se demarcar das convenções que têm alimentado muitos produtos típicos do mercado de Verão.
As atribulações da sua difusão (no caso português, estamos a descobri-lo quase dois anos após a estreia francesa) acabam por ser sintomáticas de um problema global dos mercados (e dos mercados globais). Assim, para além das suas muitas maravilhas, a aceleração digital desses mercados contribui, por vezes, para um estreitamento da oferta, vitimizando objectos admiráveis como O Jovem Prodígio T. S. Spivet, alheios à formatação que tem contaminado muito cinema “juvenil”. Dir-se-ia que as angústias vividas pelo pequeno T. S. Spivet passaram para o filme de Jeunet, reforçando a moral da história. A saber: é sempre perigoso usar a inteligência.