A edição em DVD de O Último dos Injustos, de Claude Lanzmann, é um bom pretexto para repensarmos as relações entre o olhar e as palavras, o ver e o dizer — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Agosto), com o título 'Como falamos daquilo que vemos?'.
Na vida cultural portuguesa, está instalado um peculiar discurso de apologia e defesa da memória. Ora, mesmo sem pormos em causa essa defesa (essencial na definição de qualquer identidade histórica), vale a pena perguntar que apologia se está a sustentar.
Dois universos contêm sinais reveladores. A política, antes do mais, em que a defesa da memória tende a reduzir-se, não poucas vezes, à preservação do património arquitectónico (cuja importância, entenda-se, não está minimamente em causa). E a televisão, confundindo o trabalho da memória com a multiplicação de imagens “simbólicas”, repetidas e repetitivas — pergunta-se, a propósito: que consolidação da memória do 25 de Abril resultou da repetição anual, ao longo de décadas, das mesmas imagens dos soldados e da multidão no Largo do Carmo, sempre com a mesma marcha militar em fundo sonoro?
Reencontro tais dúvidas a pretexto de O Último dos Injustos, o filme de Claude Lanzmann sobre Benjamin Murmelstein, derradeiro presidente do Conselho Judeu do gueto de Theresienstadt, o único que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial (estreado por ocasião dos 70 anos do fim do conflito, chegou agora ao mercado do DVD). O Último dos Injustos organiza-se, aliás, como um duplo exercício de memória: primeiro, com o registo de uma conversa de Lanzmann com Murmelstein, em 1975, recordando, em particular, o seu trabalho para preservar a vida de muitos judeus (entrevista registada no âmbito da rodagem do monumental Shoah, lançado em 1985); depois, através do retorno do realizador, em 2012, aos lugares que envolvem memórias das atrocidades nazis.
Sabemos que a visão de Lanzmann continua a ser muito discutida por causa da sua opção central de não integrar imagens de arquivo. E mesmo considerando (como eu considero) que Lanzmann é um dos mais importantes retratistas da Solução Final, importa dizer que alguns argumentos contra essa opção merecem ser devidamente avaliados. Em qualquer caso, importa também revalorizar o cerne do seu cinema. Assim, Shoah e O Último dos Injustos — tal como Sobibor, 14 de Outubro 1943, 16 Horas (2001), sobre a única revolta bem sucedida num campo de extermínio nazi — são objectos de cinema edificados, não através da crença pueril na “transparência” das imagens, antes a partir do valor primordial da palavra.
Como falamos daquilo que vemos? Eis a interrogação fulcral de Lanzmann, tendo como ponto de partida o mais difícil de ver: as imagens do Holocausto. É uma interrogação tanto mais actual e urgente quanto, por vezes, o espaço social se apresenta ocupado por avaliações anedóticas do exercício da fala. Observe-se, por exemplo, a agitação das forças políticas em torno dos elencos dos debates televisivos sobre as próximas eleições. Como sempre, não se discutem as formas de pensar/dizer a política, mas uma banal questão de quorum no espaço televisivo — são sintomas cruéis da indiferença dos nossos políticos em relação às linguagens do audiovisual.