O ciclo dedicado a Jacques Tati, apresentado pela Leopardo Filmes, inclui todas as longas e curtas-metragens que dirigiu, escreveu e interpretou (sendo algumas das curtas assinadas por outros realizadores), em versões digitais restauradas. Em Lisboa, no Espaço Nimas, a iniciativa arranca a 20 de Agosto, com o filme Sim, Sr. Hulot (1971), prolongando-se até 16 de Setembro, dia de encerramento com O Meu Tio (1958). Cada filme será exibido, pelo menos, em quatro dias diferentes; a primeira sessão das curtas ocorre a 25 de Agosto. No Porto, no Teatro Municipal Campo Alegre, o arranque do ciclo está agendado para 1 de Setembro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Agosto), com o título 'O humor entre a regra e a excepção'.
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Em 1958, ano de lançamento do seu filme de maior impacto internacional, O Meu Tio, Jacques Tati deu uma entrevista a André Bazin e François Truffaut para os Cahiers du Cinéma (nº 83, Maio). Especialmente importante era o modo como explicava que, desde o princípio, tentara demarcar-se de toda uma tradição de comédia ligada ao circo e ao “music-hall”.
Lembrava ele que a personagem cómica tradicional se distingue, desde logo, pela diferença que anuncia: é alguém que se apresenta como especialista em explorar uma certa atitude circense, dançando, fazendo acrobacias, contando histórias divertidas... Ora, o efeito cómico pode nascer, não da excepção, mas da regra. Como dizia Tati, “não é necessário ser uma grande personagem de comédia para que nos aconteça uma situação cómica”.
Na prática, isto significa que Tati, nomeadamente através do emblemático Sr. Hulot, se impôs, não pela sua diferença (social, simbólica, etc.), mas, ironicamente, através de uma certa indiferença. Afinal de contas, por exemplo em O Meu Tio, ele é apenas o tio que gosta de visitar o sobrinho para partilhar alguns momentos de carinho e diversão.
Através da sua condição de “cidadão com os outros”, Tati acabou por construir uma visão metódica das transformações da sociedade francesa, desde a nostalgia burlesca de uma certa ruralidade, obviamente consagrada em Há Festa na Aldeia (1949), até à visão delirante do mundo automóvel, em Sim, Sr. Hulot (1971), passando, claro, pela apoteose urbana de Playtime (1967).
A possibilidade de revermos agora a obra de Tati (incluindo as curtas-metragens!) envolve algo mais do que o reencontro com um dos génios da história do cinema francês. Através dele, poderemos partilhar a sofisticada inteligência de um retrato da vida social em que, muitas vezes, o indivíduo se descobre apagado pela pressão dos valores colectivos. Por alguma razão, os cineastas da Nova Vaga, também eles apostados em criticar as ilusões da “sociedade de consumo”, viram em Tati a marca de um mestre.