sexta-feira, agosto 21, 2015

Tati: as longas através das curtas

AS AULAS NOCTURNAS (1967)
O ciclo Jacques Tati, apresentado pela Leopardo Filmes, inclui todas as longas e curtas-metragens que dirigiu, escreveu e interpretou (sendo algumas das curtas assinadas por outros realizadores), em versões digitais restauradas. Em Lisboa, no Espaço Nimas, entre 20 de Agosto e 16 de Setembro; no Porto, no Teatro Municipal Campo Alegre, com início agendado para 1 de Setembro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Agosto), com o título 'O bloco de apontamentos do humor'.

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O ciclo dedicado a Jacques Tati (1907-1982) inclui, como fundamental apêndice, as suas curtas-metragens. É quase inevitável sentirmos que a sua brevidade natural serviu de ensaio para as proezas das longas (um pouco como os programas de televisão que Jerry Lewis, outro génio da comédia, fez ao longo da década de 60) — dir-se-ia o bloco de apontamentos de um conceito de humor que sempre exigiu a procura de composições, durações e ritmos muito precisos.
1949
Vale a pena recordar que, embora não tenha sido um nome da Nova Vaga francesa (começou muito antes, além do mais), tal como alguns dos seus autores emblemáticos (Godard, Truffaut, etc.) Tati foi também um dedicado e delicado experimentador do formato curtas. Nesse aspecto, há um laço simbólico que o aproxima de grandes mestres do burlesco do período mudo, a começar por Charles Chaplin e Buster Keaton.
Os dois filmes mais recentes, Especialidade da Casa (1978) e Força, Bastia (2002) serão os mais atípicos: o primeiro é, de facto, uma realização da filha de Tati, Sophie Tatischeff (1946-2001), colaboradora na montagem de vários filmes do pai; o segundo, terminado por ela quase vinte anos depois da morte de Tati, organiza imagens que ele registou (chegaram a ser consideradas perdidas) do jogo da primeira mão da final da Taça UEFA, em 1978, entre Bastia e PSV Eindhoven — foi o próprio presidente do Bastia que o convidou para tal tarefa.
Depois, há quatro preciosidades escritas e interpretadas por Tati, sendo apenas a última dirigida por ele: Procura-se Brutamontes (Charles Barrois, 1934), sobre um candidato a actor envolvido num combate de boxe; Domingo Animado (Jacques Berr, 1935), centrado numa caricata excursão rural; Cuida do Teu Gancho Esquerdo (René Clément, 1936), com um empregado de uma quinta também “empurrado” para o mundo do boxe; enfim, A Escola de Carteiros (1947), que serviu a Tati de ensaio da personagem do carteiro que se desloca de bicicleta, depois central na sua primeira longa-metragem, Há Festa na Aldeia (1949).
1967
Finalmente, As Aulas Nocturnas (1967), assinado por Nicolas Ribowski, corresponde a uma espécie de intervalo criativo na atribulada rodagem de Playtime – Vida Moderna (1967), com Tati a assumir o papel de um professor das artes de representação, no fundo retomando uma série de situações emblemáticas dos seus próprios filmes. São memórias desencantadas dos tempos de fabricação de uma obra-prima que, na época do seu lançamento, se saldou por um cruel falhanço financeiro.
Dir-se-ia até que As Aulas Nocturnas corresponde a uma assumida “revisão da matéria dada”, uma vez que Tati vai pontuando a sessão na sala de aula com “visões” do exterior (convocando os alunos para a janela) que citam a sua própria obra: por exemplo, uma nova encenação da sessão de aprendizagem de A Escola dos Carteiros e o treino do tenista, obviamente reminiscente de As Férias do Sr. Hulot (1953). Tal como Chaplin, Keaton ou Lewis, Tati foi um paciente e obsessivo encenador dos seus “gags”, sempre à procura da perfeição.