NETWORK (1976) |
O populismo televisivo invadiu o cinema: eis um dado fundamental (fundamentalmente terrível) do presente cultural português — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Agosto).
Em vésperas de campanha eleitoral, é sintomático que os partidos políticos se mostrem unidos no mesmo terrível silêncio sobre o domínio cultural. Há, em particular, uma incrível indiferença por qualquer possível reflexão sobre o espaço televisivo — sendo esse o espaço em que, hoje em dia, se decidem e promovem os valores mais fortes do tecido social e também, claro, as matrizes correntes de intervenção política.
Os modos dominantes de fazer política, à direita e à esquerda, estão marcados por uma cobardia intelectual que evita enfrentar o nosso populismo audiovisual. A questão é tanto mais actual, dramaticamente actual, quanto esse populismo tem vindo a ocupar zonas significativas do cinema — observem-se os recentes lançamentos de filmes como O Pátio das Cantigas, parasitando a herança estética do cinema do Estado Novo, e Um Encontro com o Destino, caricaturando uma família de emigrantes no Canadá.
Escusado será dizer que a questão do populismo não se confunde com o domínio da comédia (a noção de que os críticos “não gostam de comédias” não passa, aliás, de uma típica difamação populista). Nem sequer pode ser colocada a partir do impacto comercial seja do que for (reduzir a vida das linguagens artísticas a valores de bilheteiras é mesmo a mais velha impostura de qualquer forma de populismo).
Basta observarmos o que tem acontecido no enquadramento televisivo do futebol para compreendermos a lógica simplista, de sistemática infantilização, que tem vindo a “naturalizar-se” à nossa volta. Assim, temos assistido à metódica consagração de todos os clubismos — no limite, o adepto (de qualquer clube) já não é apresentado e representado como um sujeito de gosto, mas sim como peão de uma religiosidade alheia a qualquer fruição do próprio espectáculo.
Para além das muitas, e muito contrastadas, encarnações históricas do populismo, o que está a acontecer envolve uma lição cruel, porventura a mais difícil de aceitar: o populismo ideológico, sendo apanágio de quase todas as ditaduras, vive e sobrevive também na dinâmica das sociedades democráticas. Há, em todo o caso, um princípio básico que vai prevalecendo: as matrizes populistas diluem as singularidades individuais numa definição abstracta, supostamente redentora, do colectivo, quer dizer, do “povo”. A palavra “povo” tornou-se mesmo um elemento que os políticos evitam, tendo sido apropriada como bandeira dos programas vespertinos de televisão, alimentados por concursos pueris e música pimba.
Algures, num ecrã de televisão, dizia a personagem de Howard Beale, interpretada por Peter Finch: “Vocês começaram a acreditar nas ilusões que pusemos aqui a rodar. Começaram a acreditar que o ecrã é a realidade, e que as vossas próprias vidas não são reais”. Foi há quase quarenta anos, num filme chamado Network (1976), escrito pelo genial Paddy Chayefsky e realizado por Sidney Lumet. Ou como diria o típico discurso populista: são disparates do imperialismo americano...