segunda-feira, agosto 31, 2015

O futebol contra a língua portuguesa

REMBRANDT
Auto-retrato
1630
As agressões contra a língua portuguesa continuam a proliferar no espaço tele-futebolístico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Agosto), com o título 'Contra a língua portuguesa'.

1. A violência contra a língua portuguesa vinda da área televisiva do futebol é cada vez mais chocante. Escusado será repetir que não se trata de penalizar os erros de construção ou concordância que se cometem naturalmente, em especial na tensão dos directos. Não é esse o problema. O problema é a normalização de lamentáveis atentados à riqueza do nosso falar.

2. Como é possível que, em debates sobre futebol ou transmissões de jogos, haja cada vez mais vozes que aplicam o infinito dos verbos como se fosse uma matriz gramatical para todas as situações? “Dizer que a equipa vai começar o jogo em 4x3x3...” Como é possível que tal monstruosidade tenha ganho estatuto de norma? “Lembrar que se disputa outro jogo importante...” Dentro das televisões, já ninguém escuta? Pior um pouco: já ninguém se escuta?

3. E que dizer do ridículo anglicismo que leva a generalizar a tradução do “you” inglês por “tu”?... “Se jogas com três defesas, tens de organizar o resto da equipa...” Mais do que isso: em nome de quê se anda a traduzir a palavra espanhola “ilusión” por “ilusão”? “Temos a ilusão de poder ganhar o jogo...” Como? Ainda ninguém reparou que, muitas vezes, a palavra significa “esperança”, “expectativa”, “forte desejo”?

4. Um dias destes, algures na televisão, assistiremos a um debate muito sério sobre a dimensão histórica, social e cultural da língua portuguesa. E não tenhamos dúvidas: se alguém fizer notar que há protagonistas do futebol televisivo que estão a destruí-la, haverá sempre um moderador atento para lembrar que “não é isso que estamos a discutir”...

5. Na televisão inglesa, José Mourinho fala inglês. Na televisão espanhola, Cristiano Ronaldo fala espanhol. Na televisão portuguesa, Julen Lopetegui fala... espanhol. São factos que nada nos dizem sobre os méritos dos respectivos protagonistas. Em todo o caso, são bastante reveladores dos valores que (não) prevalecem no nosso espaço audiovisual.