
Que fique desde já claro que este novo disco que Hebden edita como Four Tet não procura seguir heranças sonoras do krautorock, mas antes um sentido de exploração da noção de duração e de liberdade formal que caracterizava alguma da música de então, o algo esquecido Morgenspaziergang que fechava o alinhamento de Autobahn tendo na verdade algumas afinidades com o que aqui encontramos, sobretudo pelo desejo em sugerir uma cenografia ligada a etapas do dia.
É a partir de uma série de elementos que, pela repetição, vão construindo um corpo que lentamente ganha forma com um travo minimalista que muitos poderão associar ao minimalismo de um Ricardo Villalobos. A voz samplada da diva de Bollywood Lata Magenskhar, que é integrada na matriz e repetida, como um canto que convida ao acordar, confirma o alvor do dia e ilumina a faixa que, com o título Morning, abre o “programa” e ocupa toda a face A do disco (sim, há edição em vinil, naturalmente). É talvez contudo mais envolvente ainda a construção que escutamos em Evening, faixa do lado B na qual um novo “programa” nos acompanha desde um tépido fim e lento de tarde a um mergulho na noite que se desenha aos poucos, acabando por nos conduzir a uma pista de dança onde uma contida ordem house arruma últimas ideias e encerra o retrato deste dia resumido em dois temas e 40 minutos de música.
Se a ideia de retrato ecoa (boas) memórias de uma ideia de música programática que outrora tinha largos discípulos e nos últimos anos do século XX conheceu referência maior em From Gardens Where We Feel Secure (1983), de Virginia Astley – também num díptico desenhado entre uma manhã e uma tarde -, neste novo disco de Four Tet há também um desejo de reencontro de um relacionamento entre as estruturas rítmicas da música de dança – nomeadamente a house – e as sugestões de um terreno “ambiental” que em tempos teve nuns Orb ou Future Sound Of London algumas das suas vozes mais entusiasmantes.
Apesar de abstracto nas expressão de caminhos, há uma clareza no modo como a ideia dos programas (matinal e de fim de tarde) se apresentam, revelando esta música uma capacidade para ser, mais do que apenas um cenário, um corpo vivo que sugere um caminho e provoca sensações. E assim nasce um dos mais cativantes “programas” que a música nos deu a escutar nos últimos anos. Um herdeiro de um La Mer de Debussy, portanto…